Pio observava o irmão mais velho da janela do terceiro andar. M. montava um garanhão negro, com uma postura quase primitiva. Pio, que invariavelmente se apresentava melancólico, deixava transparecer uma certa sofreguidão; a imagem tinha um toque de violência, provavelmente devido ao cavalo, mas que favorecia o cavaleiro – dava-lhe vida.
M. desmontou a besta negra e caminhou a passo sólido para a mansão. Pio recolheu-se e sentou-se na poltrona com um livro na ponta dos dedos. Quinze minutos mais tarde, M. juntou-se a ele na pequena biblioteca, ocupando também uma poltrona e abrindo um livro.
Pio recebeu aquele silêncio solenemente. De vez em quando, levantava os olhos sobre as letras e via que o livro parecia uma ilha nas mãos do irmão. Não era possível a mais nenhum homem transformar coisas grandiosas em pequenas e coisas pequenas em insignificantes. Pelo menos para Pio.
Os seus olhos regressaram ao livro, mas as letras escorregavam pela página, como se um estranho calor as descolasse. Pio revolveu as páginas e viu letras. Era possível conseguir acompanhar a história dali, portanto ignorou as páginas anteriores. Mas estas, enquanto ele tornou a levantar os olhos para polir a imagem de M., queimaram e esburacaram o livro. Desistiu daquele devaneio e fechou a obra. Desceram para jantar. Pio caminhava na sombra de M., como um devoto que acolhe uma penitência. Comeram de frente um para o outro, na comprida mesa centenária e, pouco mais tarde, recolheram-se.
Pio dormia no quarto ao lado de M. e adormecia sempre com a sensação de que as paredes eram de cera e que delas palpitava um calor insuportável. Em noites menos sensatas, tentava escavar as paredes e descobria sempre que afinal ainda eram de pedra. Adormecia horas depois, com a sensação de ser denso e oco ao mesmo tempo.
No dia seguinte, Pio viu uma estranha jovem a dirigir-se a M. à saída da igreja. O seu irmão era afável para todos aqueles que o abordassem, mas desta vez a conversa parecia menos circunstancial e mais demorada. Quem seria ela para merecer tanta atenção? Olha para ela… tão direita e perfeita no seu corpete e com a sombrinha a proteger-lhe os canudos negros. Era uma cena singular e Pio rapidamente enrubesceu. Um fogo nascia das entranhas e de repente a jovem era feita de cera. Mas não como a das suas paredes; esta fedia e derretia-se. Os canudos tornavam-se macilentos, a sombrinha enterrava-se pelas mãos adentro, um dos olhos e o canto da boca descaíam e depressa se via a caveira cinzenta. Pio quis que o seu crânio e miolos se desfizessem também, misturando pele e órgãos numa única pasta. Pio regressou do delírio com um olhar febril, enquanto a voz de M. lhe soava à distância. Pio recompôs-se, frustrando-se pela jovem ainda ser bela e rosada.
Pio já pouco falava, mas nesse dia não disse uma palavra. Enquanto liam como de costume, M., talvez sentindo a falta dos olhares ocasionais que Pio julgava serem segredo, baixou o livro e pediu ao irmão que falasse. O rapaz colérico perguntou que interesse tinha M. naquela rapariga. A surpresa foi óbvia no rosto de M., mas depressa se compadeceu do irmão mais novo. O sofrimento de Pio revolvia-lhe pela pele, para cima e para baixo, tornando-a estranhamente pálida e depois vermelha num repente. Apesar de tudo, M. viu-se obrigado a dizer que não podia ficar solteiro para sempre.
Os olhos de Pio brilharam, certamente das lágrimas que prendia, e subindo muito o queixo saiu da sala. Os pulmões de M. pesaram como se estivessem cheios de água. Decidiu que era mais sensato não ir atrás de Pio, mas já não conseguia ler, portanto serviu-se de whisky.
A casa estava adormecida na penumbra. Os passos soavam altíssimos e encaminhavam-se atordoados para o quarto. M. pousou a palma da mão contra a porta e sentiu que ela palpitava como um coração humano. Pio, intrigado com o barulho, levantou-se. Tinha a certeza de que M. estava do outro lado, mas temeu abrir a porta e não o ver. O tempo alongou-se perdendo a noção de si próprio.
Pio sentiu a maçaneta a rodar-lhe por baixo da mão. A porta abriu-se e um peso morto caiu-lhe nos ombros esguios. O bafo de M. cheirava a álcool, mas Pio não o afastou de si. Acolheu-o em si, desejando ser imaterial para que o irmão pudesse caber integralmente nele e não apenas nos seus braços. Pio deitou-o e descalçou-o. M. puxou-o para si e voltaram a partilhar a cama como em crianças.
Na manhã seguinte, Pio acordou sozinho. Perguntou por M. ao primeiro criado que viu. «O senhor M. foi alistar-se na tripulação de um comandante inglês, senhor.» O mundo desfocou-se aos olhos de Pio e, por fim, apenas cera.
O sino da igreja tocava pelas lágrimas de M. Este chorava ajoelhado ao caixão do quase transparente Pio. Chorava, não tanto pela perda, mas por não ter coragem de seguir atrás do irmão mais novo. Nada mais se sabe de M. depois disto.
M. desmontou a besta negra e caminhou a passo sólido para a mansão. Pio recolheu-se e sentou-se na poltrona com um livro na ponta dos dedos. Quinze minutos mais tarde, M. juntou-se a ele na pequena biblioteca, ocupando também uma poltrona e abrindo um livro.
Pio recebeu aquele silêncio solenemente. De vez em quando, levantava os olhos sobre as letras e via que o livro parecia uma ilha nas mãos do irmão. Não era possível a mais nenhum homem transformar coisas grandiosas em pequenas e coisas pequenas em insignificantes. Pelo menos para Pio.
Os seus olhos regressaram ao livro, mas as letras escorregavam pela página, como se um estranho calor as descolasse. Pio revolveu as páginas e viu letras. Era possível conseguir acompanhar a história dali, portanto ignorou as páginas anteriores. Mas estas, enquanto ele tornou a levantar os olhos para polir a imagem de M., queimaram e esburacaram o livro. Desistiu daquele devaneio e fechou a obra. Desceram para jantar. Pio caminhava na sombra de M., como um devoto que acolhe uma penitência. Comeram de frente um para o outro, na comprida mesa centenária e, pouco mais tarde, recolheram-se.
Pio dormia no quarto ao lado de M. e adormecia sempre com a sensação de que as paredes eram de cera e que delas palpitava um calor insuportável. Em noites menos sensatas, tentava escavar as paredes e descobria sempre que afinal ainda eram de pedra. Adormecia horas depois, com a sensação de ser denso e oco ao mesmo tempo.
No dia seguinte, Pio viu uma estranha jovem a dirigir-se a M. à saída da igreja. O seu irmão era afável para todos aqueles que o abordassem, mas desta vez a conversa parecia menos circunstancial e mais demorada. Quem seria ela para merecer tanta atenção? Olha para ela… tão direita e perfeita no seu corpete e com a sombrinha a proteger-lhe os canudos negros. Era uma cena singular e Pio rapidamente enrubesceu. Um fogo nascia das entranhas e de repente a jovem era feita de cera. Mas não como a das suas paredes; esta fedia e derretia-se. Os canudos tornavam-se macilentos, a sombrinha enterrava-se pelas mãos adentro, um dos olhos e o canto da boca descaíam e depressa se via a caveira cinzenta. Pio quis que o seu crânio e miolos se desfizessem também, misturando pele e órgãos numa única pasta. Pio regressou do delírio com um olhar febril, enquanto a voz de M. lhe soava à distância. Pio recompôs-se, frustrando-se pela jovem ainda ser bela e rosada.
Pio já pouco falava, mas nesse dia não disse uma palavra. Enquanto liam como de costume, M., talvez sentindo a falta dos olhares ocasionais que Pio julgava serem segredo, baixou o livro e pediu ao irmão que falasse. O rapaz colérico perguntou que interesse tinha M. naquela rapariga. A surpresa foi óbvia no rosto de M., mas depressa se compadeceu do irmão mais novo. O sofrimento de Pio revolvia-lhe pela pele, para cima e para baixo, tornando-a estranhamente pálida e depois vermelha num repente. Apesar de tudo, M. viu-se obrigado a dizer que não podia ficar solteiro para sempre.
Os olhos de Pio brilharam, certamente das lágrimas que prendia, e subindo muito o queixo saiu da sala. Os pulmões de M. pesaram como se estivessem cheios de água. Decidiu que era mais sensato não ir atrás de Pio, mas já não conseguia ler, portanto serviu-se de whisky.
A casa estava adormecida na penumbra. Os passos soavam altíssimos e encaminhavam-se atordoados para o quarto. M. pousou a palma da mão contra a porta e sentiu que ela palpitava como um coração humano. Pio, intrigado com o barulho, levantou-se. Tinha a certeza de que M. estava do outro lado, mas temeu abrir a porta e não o ver. O tempo alongou-se perdendo a noção de si próprio.
Pio sentiu a maçaneta a rodar-lhe por baixo da mão. A porta abriu-se e um peso morto caiu-lhe nos ombros esguios. O bafo de M. cheirava a álcool, mas Pio não o afastou de si. Acolheu-o em si, desejando ser imaterial para que o irmão pudesse caber integralmente nele e não apenas nos seus braços. Pio deitou-o e descalçou-o. M. puxou-o para si e voltaram a partilhar a cama como em crianças.
Na manhã seguinte, Pio acordou sozinho. Perguntou por M. ao primeiro criado que viu. «O senhor M. foi alistar-se na tripulação de um comandante inglês, senhor.» O mundo desfocou-se aos olhos de Pio e, por fim, apenas cera.
O sino da igreja tocava pelas lágrimas de M. Este chorava ajoelhado ao caixão do quase transparente Pio. Chorava, não tanto pela perda, mas por não ter coragem de seguir atrás do irmão mais novo. Nada mais se sabe de M. depois disto.
Por: Eva Duarte
Eva Duarte é uma jovem escritora portuguesa. Em 2010 publicou o romance infanto-juvenil Angelyraa – Humanidade
de Cristal e o conto A Lua Também Chora. Se pretende obter uma das suas obras, entre em contacto connosco.
Conto publicado na edição #19 da Revista 21