Emílio Gouveia Miranda ficou em segundo lugar no Concurso Novos Autores - Revista 21/Bertrand. De estruturação arrojada para mini-conto, «(N)A Equação Matemática da Vida» é um olhar emotivo ao passado através de vários pontos de vista que, contudo, se centram num único personagem. Com um estilo marcadamente realista, Emílio Gouveia Miranda pinta de forma nítida um retrato de saudade e nostalgia.
I
É normal pensarmos que certas tragédias nunca nos acontecem. Completo engano. Qualquer uma pode escolher-nos, na equação matemática da vida.
Mas cada dia é um recomeço. Cada recomeço, uma oportunidade.
II
A casa ardeu num ápice. Como ardem as casas velhas, ressequidas.
Vi o fumo, do fundo do povo, enquanto andávamos no lameiro a arrancar batatas.
Era sábado e o plano, findo o trabalho, uma ida ao cinema. Mas os planos mudam. Quando menos se espera.
III
Um pensamento. Um único.
Ao longo dos anos tinha comprado num alfarrabista da cidade uma meia centena de revistas de BD que eram o seu tesouro pessoal. Estavam guardadas sob a cama, numa caixa que ele mesmo havia construído. Naquele dia percebeu que tudo era relativo. Perante todas as perdas, lamentava apenas aquela.
IV
A casa que foram habitar, por empréstimo, estava fechada havia anos, despida e semi-arruinada. Ficava no meio do povo e recebia a sombra de um palacete, com brasão de armas, terreiro e quintais nas traseiras, onde havia árvores, empenas de videiras e um tanque. No pequeno largo fronteiro, uma capela e uma pequena tasca, onde à noite se juntavam grupos de jogadores de cartas e de bebedores de bagaço, debaixo de uma televisão, que recebia os olhares distraídos destes entusiastas do desporto sentado. Imperava o cheiro a aguardente, a pataniscas, sardinhas e iscas de cebolada.
V
Permaneceram algumas semanas mais na aldeia. Mas o início do Inverno haveria de os levar definitivamente para a cidade, desta feita para habitarem eles próprios um palácio. Janelas generosas, divisões amplas, e uma quinta para cuidar. Durante meses viveu a ilusão da redescoberta de espaço. Havia, próxima, uma nova realidade de ruas e ruelas, lojas e recantos novos na cidade. Defronte, o amplo jardim da estação rivalizava com os socalcos que escorriam nas traseiras do casarão, debruçados sobre as encostas que se detinham à vista do Corgo.
Havia espaço para os arcos e as flechas.
VI
É nas derrocadas que avaliamos a nossa dimensão. Não só pela quantidade de destroços, mas sobretudo pela capacidade de levarmos a cabo a reconstrução.
VII
Perante as adversidades, o pai era sempre um homem sereno e positivo, que subscrevia à risca a máxima de que enquanto estamos vivos tudo é possível e vale a pena. Sabia bem do que falava…
Na verdade a vida não foi feita para ser perfeita, mas para ser vivida. Cada contrariedade superada, sem desânimo, mantendo quanto possível a dignidade.
Nada disto foi pensado enquanto a rua e o largo falavam mais alto, e a luz das estrelas iluminava mais do que aquela que encobria os recantos sombrios da casa. Mas a lembrança que vem com o tempo, haveria de o fazer recordar todas estas coisas e tecer acerca delas as reflexões que apenas a distância permite.
Longe do calor das chamas e do fumo que nenhum vento dispersa, quando próximo.
Texto: Emílio Gouveia Miranda
Trabalho publicado na edição #12 da Revista 21