Manuel Pimenta ficou em oitavo lugar no Concurso Novos Autores - Revista 21/Bertrand. A nível de tema, o seu conto é um dos mais originais que recebemos, retratando um confronto visual entre um homem e um corvo, com uma interessante construção imagética. No seu todo, porém, «O Homem e o Corvo» soa mais a capítulo que a mini-conto.
O cheiro a sangue e suor pesava no ar quando abriu os olhos. Tudo estava escuro. Estarei cego? Um pequeno ponto de luz começou a expandir-se ao mover a cabeça. Claro que não, idiota! Estás apenas debaixo de uma pilha de... algo!
Escavou o braço debaixo do que o esmagava usando as pernas para alavancagem, quando algo se moveu e ficou novamente cego – era a luz do sol.
Do topo de uma árvore chamuscada, um corvo observava uma pilha de corpos mover-se. Os seus irmãos e irmãs assustaram-se, mas não ele. O seu estômago estava cheio e os seus cadáveres tinham dado a luta que tanto apreciava. E porque era o maior dos seus irmãos, tinha conseguido afastar os que ainda desafiavam a sua primazia.
E assim foi que o mais inteligente dos corvos observou um humano rastejar de entre a pilha de sangue, carne e peças soltas de armadura. E por uma vez na vida ficou surpreendido.
A sua perna esquerda agonizava-o e já tinha decidido que estava partida. A direita sangrava de cortes sortidos, mas estava inteira. Os braços queimados em vários sítios tinham ainda força para o arrastar para o sol e a sua cabeça latejava impiedosamente. O seu olho direito estava inchado e o esquerdo enublado pelo sangue que lhe escorria da testa. Estava uma miséria, mas estava vivo. E seria isso bom?
Encostando-se a uma árvore constatou que não se lembrava do seu nome, nem porque ali estava. Lembrou-se sim da amnésia expectável numa situação destas. Olhou para o céu. Vejamos, perco sangue a um ritmo considerável e a minha perna esquerda está inutilizada a não ser que a endireite. E devo estar a sangrar internamente, o que quase nunca é bom.
Que comportamento estranho demonstrava este humano, rastejando como se pudesse sobreviver. O corvo via a ruína da perna do homem, as manchas que indicavam que internamente coagulava aquele sangue delicioso, a pulsar com a adrenalina. Como sabia tudo isto ultrapassava-o, mas sempre sentira que era mais que um simples corvo, sentia algo que não via nos olhos dos seus irmãos.
Apesar de tudo, o humano sobrevivia. Pensativo, inclinou a sua cabeça e olhou curioso para aquele que se recusava a morrer.
Porque raios está aquele corvo a olhar pra mim?...
«Não sou para ti, corvo! Arranco-te o bico à dentada ou não me chame...» Qual é o meu nome?...
Vendo o humano hesitar, algo clicou na mente do corvo. Abriu as asas negras e planou em direcção ao homem.
Olhou-o intrigado e aproximou-se com dois saltos daquele que teimava em viver, vendo nos seus olhos a dúvida que o mantinha vivo. Bateu as asas e impeliu-se em direcção ao peito que o chamava.
O homem viu o corvo aproximar-se, incapaz de reagir e naquele momento tudo fez um sentido inexplicável, como um culminar de algo. E ao sentir o bico do pássaro a dilacerar-lhe o peito, ouviu nas profundezas da sua mente.
Harper. Era esse o teu nome...
Texto: Manuel Pimenta
Lista de vencedores do Concurso Novos Autores - Revista 21/Bertrand
Mais informações na edição #12 da Revista 21