quarta-feira, 4 de Julho de 2012

Eva Duarte: O Delírio


Deitada na cama, a imagem surgiu-me sem que me apercebesse: o meu corpo desfazendo-se, derretendo como plástico queimado. As ligações dos ombros, cotovelos, coxas e joelhos separavam-se do meu tronco, de forma lenta e indolor. A única coisa que realmente sentia era as minhas extremidades a afastarem-se a pouco e pouco de mim. Completamente consciente da perda dos meus sentidos, soube que o deterioramento dos meus membros era a consequência lógica de um corpo violado.

O mecanismo natural do corpo humano obrigava-me a respirar. Ainda que devesse ser um acto involuntário, pareceu-me de repente que o meu corpo tinha desligado e que tinha agora de aprender a respirar sozinha. Entendi que enfrentava uma tarefa realmente difícil. Era então por isso que tal tarefa estava confiada ao inconsciente. A cada fôlego sentia uma película de gelo na garganta, finíssima, graças ao sabor do perfume dele que restara em mim. Ironicamente, sempre julguei que os monstros cheirassem a enxofre, mas um homem vulgar cheira a homem vulgar.

A imagem do meu corpo desintegrado permanecia. O toque dele de alguma forma me terá queimado, ou simplesmente a minha vergonha tentava apagar as provas. Pego de novo nessa imagem e analiso-a; penso nela. Vista de perto tomava formas trágicas, embora acredite que com a passagem do tempo todo o grotesco se torne belo. Se tal não acontecer, torna-se no mínimo numa imagem trivial e toda a humanidade peca por sentir atracção pela vulgaridade. Seja como for, está destinada a desaparecer.

Brancura, garanto que não manchou nenhuma, mas é certo que matou algo em mim. Talvez seja por isso que o meu corpo se desfaz – há algo dentro dele em putrefacção. Adormeço e sonho. Sinto a revolta de ele estar lá, também. Ergo-me, subitamente intacta, sei que estou nua e que os meus olhos derretem. O coração expande-se e, à medida que aumenta, esmaga-me os pulmões. Atiro-me contra as paredes como se até elas estabelecessem limites à minha fúria. Quis derrubá-las, mas só eu me despedaçava como porcelana. Parei. A ideia de porcelana fez-me sentir uma boneca quebradiça. Caí ao chão e descobri-me presa a fios translúcidos, tão finos e tão presos à carne que me faziam sangrar.

Fiz por não me mexer, temendo cortar alguma veia. Contudo, algo que temia mais que veias cortadas surgiu de um sopro. Depressa me quis mover e fugir: uma sombra formava-se diante de mim. Era ele, sem cara e sem voz, mas com os mesmos contornos e com o mesmo perfume: aquele espectro negro só poderia ser uma sombra ou uma alma. Quis lubrificar a garganta gelada, mas só fui capaz de engolir em seco. O espectro aproximou-se e o meu sucesso de fugir era nulo. Como poderia escapar? Estava presa a fios. O chão desfazia-se debaixo dos seus passos, como se entrasse em contacto com ácido. Tudo aquilo em que ele tocava parecia estar destinado a consumir-se.

Toda a minha memória física latejava; nenhum banho em água ou em sangue de Cristo me conseguiu livrar do seu toque. Eu era aquele chão! Os olhos magoavam-me, vi tudo de novo – as imagens atacavam-me como corvos: a conquista dele sobre mim, uma e outra vez, o meu corpo a separar-se como plástico, a estilhaçar-se como cerâmica, a sangrar cortado pelos fios. Tudo se movia demasiado depressa, vertiginosamente, um ataque do disparate, uma realidade obscena e pouco verdadeira. As imagens dele, as imagens de mim, seria aquele espectro outra imagem? Estava longe de distinguir tudo.

Reconheci o absurdo da ingenuidade e pesei-lhe o valor. É na confiança de outros que o predador descansa as suas armas. De forma quase grega, esta minha estirpe de inocência era o complemento perfeito para a perversidade dele. Olhei de novo e por fim a sombra negra fez-me sentido. Tinha-se encaixado tudo. A escolha que tomei a seguir foi fácil e desprovida de ignorância; enrolei o pescoço nos fios e ambos desaparecemos. Com a minha cedência, a sombra desfez-se em areia.

Depois de enforcar os meus pesadelos, finalmente dormi. A causa dos meus males podia ser outra pessoa, mas a origem das imagens era eu própria. Tendo reinterpretado tudo, revolucionei as minhas noites.


Por: Eva Duarte


Eva Duarte é uma  jovem escritora portuguesa. Em 2010 publicou o romance infanto-juvenil Angelyraa – Humanidade
de Cristal
e o conto A Lua Também Chora. Se pretende obter uma das suas obras, entre em contacto connosco.

Artigo publicado na edição #11 da Revista 21

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