O salão estava embriagado numa confusão de máscaras turvas e tecidos que se roçavam. Uma pequena Afrodite, uma perfeita encarnação do Amor, excitava-se com os cortejos que absorvia de todo salão. Aquele era um antro propício à paixão, mistificado pelo anonimato. E ela fervia. Cada vez que um homem se debruçava na orelha de uma mulher, Afrodite corava, bem quente; sempre que uma mulher se insinuava a um homem, o peito de Afrodite arfava debaixo do decote. O Amor era belo e era uma mulher.
Ela viera ao baile de máscaras com Ele. A outra metade que a atraía por ser o que lhe faltava. A febre dela expandia-se pelo espaço. Imagine-se um salão rectangular – fácil, não? Agora limite-o com paredes imensas, que vincam o tecto e o chão. Já está? Sejam elas quebradas. Mexidas. Remexidas. Desintegradas. Moldadas de novo como barro. O salão é imenso e vive debaixo daquele tecto que ora está lá, ora sobe. O tecto é infinito e as paredes são instáveis. O chão desfaz-se suspenso pela sombra dos pés dos anónimos. O salão movia-se porque estava vivo e mascarado de salão. Afinal, é um baile de máscaras e o Amor está disfarçado de mulher. E ela viera com Ele.
Decorara-Lhe a máscara para que, caso O perdesse, lhe fosse possível encontrá-Lo. Pensando bem, distraíra-se com os cortejos e desejos dos demais, que os seus olhos já não O enamoravam há algum tempo. Esticou as pestanas ao tecto e em pontas dos pés procurou-O. O salão alterava-se tanto que tal tarefa foi demorada. Reparou que os corpos não reagiam à música, apenas a outros corpos. Esperou quieta que o salão se fosse transformando, pois sabia que mais cedo ou mais tarde haveria uma transformação favorável e, aí, iria vê-Lo. Por fim, o salão moveu-se.
Ela correu na direcção Dele. Mas colunas rasgavam o chão constantemente, obrigando-a a contorná-las, e o seu amor era tão forte que lhe pesava nos pés. Colava-se ao chão, arrastava mármore nas solas; era um amor tão pesado que a obrigava a ajoelhar-se perante tal força. Era um amor que se queria submeter e servir. Ele parecia-lhe longe. Contudo ela é o Amor e como tal foi dotada de persistência e depressa sentiu as pernas ligeiras. Pôde correr.
Sabem que o Amor nasceu doente? Sim. Nasceu com uma minúscula bactéria – tão minúscula como qualquer outra bactéria – incrustada no coração, que pode acordar a qualquer altura. Ao chegar a cinco passos Dele, a bactéria acordou, fez-se doença, e a pequena Vénus, parando, segurou-se ao peito com uma enorme dor. Viu colado aos lábios Dele o beijo de Outra. Ela já ouvira falar do perigo dessas Outras; eram elas a razão daquela bactéria – depois de tanto tempo inactiva – acordar e começar a roer-lhe os órgãos como um rato. O Amor, que antes caminhava embriagada de febre, arrefecia agora. Ia perdendo o rosado do rosto e do sangue.
Apertando o peito sentiu por entre os dedos o seu alfinete de prata. Arrancou-o do busto e caminhou sem vozes penduradas. Essa bactéria de que falei é comummente denominada de Ciúme. O sintoma é simples e fatal: escurece a ingenuidade para com a ideia do eternamente bom. Se analisarmos objectivamente o Amor, este tem as mesmas armas que o Ódio. E ambos drenam a paz do espírito com a mesma finalidade: ser feliz. Irónico, não é verdade?
As palavras, antes ternas, agiram sob o efeito dos sintomas. Vénus aproximou os seus cabelos de areia dos dois amantes adúlteros e espetou o alfinete no ouvido da Outra e na garganta Dele. Permitiu que caíssem a seus pés, tal como antes o peso do seu sentimento por Ele a forçava a fazer. Contemplou-os como uma deusa que assiste a um sacrifício.
O salão alterou-se uma vez mais, na sua plenitude inconstante e infinita, e um pequeno círculo de pessoas olhou os três corpos; um erguido e dois deitados em sobreposição. Estava feito; nem o salão o podia alterar. Um homem rompeu pálido por entre os ombros de outros e atirou a máscara ao chão, dando voz ao rosto. Ela caiu de joelhos quando o seu crime foi reconhecido e, com a queda, veio o choro. Chorou tanto quanto se havia bebido naquele salão que, afinal, nunca se soltara da rigidez das paredes.
Afrodite gemeu, tremendo. Arrancou do rosto a máscara da Outra para lhe conhecer a face e soluçou mais. Tirou depois a máscara Dele e era Outro. Ele olhava-a de frente, no público. Era o Terror feito homem e representava o seu crime. Morreu um amante sem traições por um amado que não a traíra. Ela tapou o rosto em vergonha e desfez-se em espuma, misturando sangue e pedra numa mancha.
Ela viera ao baile de máscaras com Ele. A outra metade que a atraía por ser o que lhe faltava. A febre dela expandia-se pelo espaço. Imagine-se um salão rectangular – fácil, não? Agora limite-o com paredes imensas, que vincam o tecto e o chão. Já está? Sejam elas quebradas. Mexidas. Remexidas. Desintegradas. Moldadas de novo como barro. O salão é imenso e vive debaixo daquele tecto que ora está lá, ora sobe. O tecto é infinito e as paredes são instáveis. O chão desfaz-se suspenso pela sombra dos pés dos anónimos. O salão movia-se porque estava vivo e mascarado de salão. Afinal, é um baile de máscaras e o Amor está disfarçado de mulher. E ela viera com Ele.
Decorara-Lhe a máscara para que, caso O perdesse, lhe fosse possível encontrá-Lo. Pensando bem, distraíra-se com os cortejos e desejos dos demais, que os seus olhos já não O enamoravam há algum tempo. Esticou as pestanas ao tecto e em pontas dos pés procurou-O. O salão alterava-se tanto que tal tarefa foi demorada. Reparou que os corpos não reagiam à música, apenas a outros corpos. Esperou quieta que o salão se fosse transformando, pois sabia que mais cedo ou mais tarde haveria uma transformação favorável e, aí, iria vê-Lo. Por fim, o salão moveu-se.
Ela correu na direcção Dele. Mas colunas rasgavam o chão constantemente, obrigando-a a contorná-las, e o seu amor era tão forte que lhe pesava nos pés. Colava-se ao chão, arrastava mármore nas solas; era um amor tão pesado que a obrigava a ajoelhar-se perante tal força. Era um amor que se queria submeter e servir. Ele parecia-lhe longe. Contudo ela é o Amor e como tal foi dotada de persistência e depressa sentiu as pernas ligeiras. Pôde correr.
Sabem que o Amor nasceu doente? Sim. Nasceu com uma minúscula bactéria – tão minúscula como qualquer outra bactéria – incrustada no coração, que pode acordar a qualquer altura. Ao chegar a cinco passos Dele, a bactéria acordou, fez-se doença, e a pequena Vénus, parando, segurou-se ao peito com uma enorme dor. Viu colado aos lábios Dele o beijo de Outra. Ela já ouvira falar do perigo dessas Outras; eram elas a razão daquela bactéria – depois de tanto tempo inactiva – acordar e começar a roer-lhe os órgãos como um rato. O Amor, que antes caminhava embriagada de febre, arrefecia agora. Ia perdendo o rosado do rosto e do sangue.
Apertando o peito sentiu por entre os dedos o seu alfinete de prata. Arrancou-o do busto e caminhou sem vozes penduradas. Essa bactéria de que falei é comummente denominada de Ciúme. O sintoma é simples e fatal: escurece a ingenuidade para com a ideia do eternamente bom. Se analisarmos objectivamente o Amor, este tem as mesmas armas que o Ódio. E ambos drenam a paz do espírito com a mesma finalidade: ser feliz. Irónico, não é verdade?
As palavras, antes ternas, agiram sob o efeito dos sintomas. Vénus aproximou os seus cabelos de areia dos dois amantes adúlteros e espetou o alfinete no ouvido da Outra e na garganta Dele. Permitiu que caíssem a seus pés, tal como antes o peso do seu sentimento por Ele a forçava a fazer. Contemplou-os como uma deusa que assiste a um sacrifício.
O salão alterou-se uma vez mais, na sua plenitude inconstante e infinita, e um pequeno círculo de pessoas olhou os três corpos; um erguido e dois deitados em sobreposição. Estava feito; nem o salão o podia alterar. Um homem rompeu pálido por entre os ombros de outros e atirou a máscara ao chão, dando voz ao rosto. Ela caiu de joelhos quando o seu crime foi reconhecido e, com a queda, veio o choro. Chorou tanto quanto se havia bebido naquele salão que, afinal, nunca se soltara da rigidez das paredes.
Afrodite gemeu, tremendo. Arrancou do rosto a máscara da Outra para lhe conhecer a face e soluçou mais. Tirou depois a máscara Dele e era Outro. Ele olhava-a de frente, no público. Era o Terror feito homem e representava o seu crime. Morreu um amante sem traições por um amado que não a traíra. Ela tapou o rosto em vergonha e desfez-se em espuma, misturando sangue e pedra numa mancha.
Por: Eva Duarte
Eva Duarte é uma jovem escritora portuguesa. Em 2010 publicou o romance infanto-juvenil Angelyraa – Humanidade
de Cristal e o conto A Lua Também Chora. Se pretende obter uma das suas obras, entre em contacto connosco.
Conto publicado na edição #05 da Revista 21
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