A comida não lhes parecia interessar e eu começava a sentir-me constrangida por prestar atenção ao meu prato. Mas não sentiria isso por muito tempo. O Homem Gordo já tinha devorado tudo o que havia ao alcance do seu braço e portanto já tinha começado a roubar as sobras. Era uma figura baixa e repelente e movia-se ridiculamente depressa para alguém tão largo. Grande parte do grupo parecia indiferente ao desaparecimento da comida, mas muitos gostavam de implicar com o Gordo, pois era um homenzinho irascível e fácil de se troçar.
Ele aproximava-se de mim. Faltavam ainda quatro cadeiras, mas eu já não podia enfiar mais nada na boca. Ele era dos poucos a que eu ainda não me tinha conseguido habituar. Muitos deles eram sinistros e outros bizarros, mas o Homem Gordo era demasiado asqueroso e os seus olhos salientes e sempre abertos nunca me tinham deixado de perturbar.
Havia outra figura que me transtornava, mas que ainda assim me inspirava alguma compaixão. Estava constantemente na sombra, muito encaracolada em si mesma, sempre ofegante e ressequida. Ainda não tinha decifrado se era homem ou mulher, pois não tinha nenhum traço específico. Passei pela sombra, uma das muitas em que a figurinha se enclausurava, e fui-me deitar. Hoje já não queria escutar mais a música que estalava da pele daquelas personagens. Todos eles eram estranhos e eu sentia-me consequentemente estranha.
Deitei-me com a exaustão a latejar-me no corpo. A escuridão era o ventre do meu abrigo pois fazia-me sentir longínqua de todos eles. Tudo naquela divisão parecia ao alcance do meu controlo, mas essa ideia depressa se desvaneceu. Pequenos passinhos ecoaram na ausência de luz e eu soube. A pequena criança que ocasionalmente me atormentava o sono veio prestar-me uma visita. Tapei as orelhas com a almofada prevendo o grito estridente da menina. Ela parecia viver para me privar da noite, ao mesmo tempo que me alienava. Para ela, eu não estava ali. Era impossível estabelecer qualquer tipo de conversa com ela, até mesmo às refeições. Eu suspirava por ver que as horas me fugiam. Finalmente, ela começou a chorar – faltava pouco para o episódio terminar. A Mulher Severa preparava-se por certo para entrar.
Cá estava ela! Alta e demasiado direita, já com a mão no ar para agarrar a criança barulhenta pelos cabelos. Arrastou-a e sacudiu-a como a um cão pequeno. E a pequena gania, quase com gosto. Na verdade, arranhava-se e gritava mais alto e a Mulher Severa batia-lhe com fúria igual, salivando insultos com os seus pequeninos olhos inundados num profundo brilho. Ouvi-las excitava-me como música clássica. Eu encontrava naquelas cenas um estranho alívio: eu era sã.
Terei adormecido provavelmente porque cedi ao cansaço. A casa estava invulgarmente silenciosa. De repente, comecei a escutar uma batida seca e forte. Cada vez mais alta. Cada vez mais rápida. O eco das paredes dava a ilusão de que o barulho estava longe, mas eu escutava-o junto a mim. Os barulhos e os movimentos bruscos eram elementos já inerentes daquela habitação e, ainda assim, algo nesta batida eriçava a minha pele contra a roupa.
Levei a mão ao peito e ele batia de acordo com o eco. Foi aí que entendi que estava a imaginar tudo e a ser levada pelo medo. Não havia eco, só medo do silêncio. Arrisquei-me a percorrer a casa. Pela primeira vez, achei a casa sinistra. A madeira guinchava sob a palma dos meus pés e eu precisei de andar mais depressa apenas para multiplicar esse som. Eu queria som e barulho e vida! Onde estava aquela gente estranha? Para onde poderiam ter ido?
Parei em frente da lareira, onde o fogo morreu negro. Não sabia como nem porquê, muito menos quando é que eles apareceram. Um dia não estavam cá, no outro sim. Ou estariam cá desde sempre? Olhei para o tecto da casa e para os corredores – a casa pareceu-me enorme. Senti o espaço devorar a minha pequenez e soltei um pequeno grito.
Desesperada com a solidão, comecei a procurar em todas as sombras pela figura anónima. De certo que ela não estaria em condições para fugir com os outros. Mas em todas as sombras só havia vazio e mais eco. Agora tinha começado a ouvir uma respiração ofegante. Coloquei a mão à frente da boca para perceber se era eu que respirava assim. Não era! Ela estava cá.
Corri à procura da figura e encontrei-a numa sombra. Fiquei tão feliz que lhe toquei pela primeira vez. A face dela parecia areia, mas não me repugnou – eu não estava só. Então, comecei a escutar sons festivos e todos os seres estranhos reapareceram numa parada cheia de cores. Deixei-me levar pelo movimento e tornei-me num deles.
Apertaram-me pelos ombros e senti que o chão fugia da ponta dos pés. Mas eu estava em êxtase. Passaram-me uma corda pelo pescoço e penduraram-me numa viga. O ar fugiu-me e eu desapareci. Hoje em dia, dizem que é uma pena que alguém doente como eu morasse só. Sentem que podiam ter prevenido tudo, mas agora só podem desfazer o nó da corda. Mas afinal, quem é que não vive com os seus demónios?
Por: Eva Duarte
Eva Duarte é uma jovem escritora portuguesa. Em 2010 publicou o romance infanto-juvenil Angelyraa – Humanidade
de Cristal e o conto A Lua Também Chora. Se pretende obter uma das suas obras, entre em contacto connosco.
Conto publicado na edição #18 da Revista 21
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