domingo, 1 de Junho de 2014

Opinião: Maus (Art Spiegelman)



Título Maus
Autor Art Spiegelman
Edição Bertrand Editora
Título Original Maus
Tradução Joana Neves
Género Banda Desenhada | Biografia
Páginas 296 | PVP 17,70 €
Ano 2014 | Original 1991
Sinopse aqui
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É provável que, por esta altura, já tenha pelo menos ouvido falar em Maus. Talvez seja até um grande apreciador de banda desenhada e o conheça como uma espécie de Santo Graal do género. Ou talvez tenha por hábito acompanhar as principais distinções literárias e associe o seu título ao reputado prémio Pulitzer que recebeu em 1992; foi, aliás, o primeiro — e, até ver, único — trabalho de banda desenhada a conquistar a cobiçada medalha. Na volta, nem é grande adepto de histórias aos quadradinhos e tem apenas a ideia, mais não seja pela capa, de que é qualquer coisa sobre o Holocausto, com gatos e ratos falantes. Não se preocupe, é um erro comum. Em todo o caso, é meu dever avisá-lo: nem Maus é uma obra (só) para apreciadores da nona arte, nem — e isto pode surpreendê-lo — se trata realmente de um livro (só) sobre o extermínio judeu às mãos das forças nazis.

Na verdade, Maus (leia-se aqui a palavra alemã para «rato» e não o adjectivo português) vai saltando entre duas narrativas distintas. A primeira dá-nos a conhecer as memórias de Vladek Spiegelman, judeu polaco e sobrevivente de Auschwitz, enquanto a segunda nos faz acompanhar o processo de elaboração de Maus por Art Spiegelman, filho de Vladek, a partir de 1978. Seja qual for a época, mantém-se a metáfora: os judeus são representados por ratos, os alemães são gatos, os americanos são cães, os polacos são porcos, os franceses são sapos, os suecos são renas e os ciganos são mariposas. Não há humanos neste livro.

Vladek Spiegelman tem um duplo papel ao longo da narrativa: protagonista natural das suas memórias, funciona a partir de 1978 como principal antagonista, em especial para com o filho Art. Ríspido, avarento, egocêntrico e até racista, é, à primeira vista, um homem difícil de se lidar e ainda mais de apreciar. O próprio Art admite, a certa altura, o seu desalento ao tentar transportá-lo para o livro como herói («De muitas maneiras, ele é igual à caricatura racista do judeu avarento»), mas confesso que, apesar de tudo, o admirei imenso e acho até que foi dos personagens que mais gostei de conhecer num livro até hoje. Vladek é complexo, contraditório, mas um reflexo bastante compreensível do seu difícil passado. As mesmas virtudes que o fizeram capaz de sobreviver ao extermínio perpetuado pelos nazis tornaram-se, com o passar do tempo, defeitos de carácter, e Vladek simplesmente se recusa a compreender o porquê.

Continuando com Vladek, permitam-me um breve aparte sobre o seu discurso. Natural da Polónia, o personagem fala um inglês «quebrado», que o autor transporta para a obra. A fim de manter o mesmo espírito do original, também a tradutora nacional o quis meter a falar um português errado. Parece-me, contudo, que a versão original é bem mais subtil. Veja-se logo na sua primeira aparição, com a frase «Friends? Your friends? If you lock them together in a room with no food for a week, then you could see what it is, friends!» traduzida para «Amigos? Os teus amigos? Se fechas a eles dentro num quarto sem comida, uma semana, então sabias o que são, os amigos!» Em todo o caso, não se preocupe, que à medida que a leitura avança, o discurso de Vladek torna-se mais fácil de apanhar.

Depois temos Art. Art não é, nas suas próprias palavras, muito chegado ao pai. Ou, mais concretamente: «Quando era miúdo, às vezes punha-me a pensar qual dos meus pais é que eu escolhia se os nazis os levassem para os fornos e eu só pudesse salvar um. Normalmente salvava a minha mãe». A ausência da mãe, que se suicidou em 1968 e só podemos, portanto, acompanhar nas memórias de Vladek, parece, aliás, um dos temas implícitos da história, assim como um dos principais motivos de frustração na vida de Art. O outro é um certo sentimento de inferioridade, tanto para com o pai como para com o falecido irmão, Richieu, que nunca chegou sequer a conhecer. Art acaba por se refugiar no trabalho, como autor de banda desenhada, e na relação com Françoise Mouly, que mantém até hoje.

Se já assumi que a minha balança tende para Vladek, é natural que se afaste de Art. O que não deixa de ser estranho. Foi, afinal, Art Spiegelman o criador desta fantástica obra, tem um talento inegável, e no entanto não fui capaz de simpatizar com ele enquanto personagem. Talvez me tenha incomodado o facto de, ao longo de toda a narrativa, Art ver o pai como um mero empecilho, colocando sempre as suas necessidades à frente das dele. Não é que as suas acções sejam incompreensíveis, até porque Vladek consegue realmente ser muito chato e teimoso, mas, não obstante, achei-o demasiado egoísta... o que não o invalida de todo como personagem essencial à trama da novela gráfica.

Confesso, a propósito, um ódio pessoal para com a expressão «novela gráfica», popularizada precisamente após o lançamento de Maus. A sua simples existência depreende snobismo literário, como se «banda desenhada» fosse, por si, sinónimo de historietas baratas para mentes vulgares. Como se, por convenção, tudo o que, estando neste formato mas exibindo inegável mérito literário, tenha obrigatoriamente de transcender o estatuto e tornar-se «novela gráfica», sob pena de os pseudo-intelectuais não lhe pegarem.

Honesto e emotivo como poucos, Maus inclui tantas sequências dignas de destaque que seria impossível — e desnecessário — estar a referi-las a todas. Não posso, ainda assim, deixar passar um dos seus mais maravilhosos momentos, o início do capítulo «Auschwitz (O Tempo Voa)». Neste, Art é retratado pela primeira e única vez como um homem, ainda que mascarado de rato. Sentado no topo de uma pilha de cadáveres judeus, faz um balanço de Maus:
«Em Setembro de 1986, depois de oito anos de trabalho, o primeiro volume de Maus foi publicado. Foi um sucesso comercial e da crítica. Vai ser publicado em pelo menos mais 15 países. Já recebi quatro ofertas sérias para adaptar o livro à televisão ou ao cinema (não quero). Em 1968, a minha mãe matou-se (não deixou nenhum bilhete). Ultimamente, tenho-me sentido deprimido».

«Muito bem, sr. Spiegelman, podemos rodar!... Conte aos nossos telespectadores: que mensagem quer transmitir com o seu livro?»

«Mensagem? Não sei... Eu... Eu nunca pensei em reduzi-lo a uma mensagem. Quer dizer, não estava a tentar convencer ninguém de nada. Só queria...»

«O seu livro está a ser traduzido para alemão. Muitos jovens alemães estão por aqui de histórias do Holocausto. Estas coisas aconteceram antes de eles sequer nascerem. Porque é que eles haviam de se sentir culpados?»

«Quem sou eu para o dizer?... Mas muitas empresas que prosperaram durante o regime nazi são hoje mais ricas do que nunca. Não sei... Talvez toda a gente tenha de se sentir culpada. Toda a gente! Para sempre!»
O interrogatório continua até Art se ver diminuído ao tamanho de uma criança, cada vez mais incomodado com a sua incapacidade de resposta. Mas a verdade é que Maus não pretende explicar o Holocausto. Como poderia, se nem o próprio autor o compreende? Nas suas entrelinhas, para além dos desumanos actos de uma das mais macabras eras da História, conta-se antes a relação entre um pai e um filho afectados pelo passado, assim como a saudade de uma esposa e mãe que subitamente desapareceu.

É esta a verdadeira explicação para a perseverança criativa de Art Spiegelman, para a existência de Maus, e uma mensagem tão transversal que não percebo como não é este livro ensinado em todas as escolas do mundo. Tornou-se claramente um dos meus livros favoritos, pelo que o recomendo vivamente, não apenas a apreciadores de obras como Persépolis ou Fun Home, não apenas a fãs de trabalhos como La Vita è Bella ou The Schindler's List, mas a todas as pessoas que saibam ler e tenham um cérebro para pensar.

Texto: Tiago Matos

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