O quarto estava aterrorizado com as várias presenças. Tantas eram dentro de um só espaço que o quarto parecia estreitar-se de dia para dia. Com a porta aberta, era possível ver-se uma luminosidade de corpos que viviam, ignorantes ou indiferentes. Nunca passaram a porta, ainda que estivesse aberta.
Dentro do quarto, um espectáculo tão absurdo que conduzia o espectador a uma loucura contínua. De lá surgia um circo enegrecido onde forças da mesma origem se gladiavam como opostas; delírios, tão fortes, tão nítidos, que começaram a respirar. Caricaturavam-se aberrações de saltimbancos: criaturas, siamesas de berço, coladas pelos ombros, chocavam mentes com duas mórbidas cabeças de ideias afastadas; umas outras rasteiras, sem pernas, desenvolviam longos braços fortes, permitindo-as subir cordas grossas que desciam do tecto. Nelas demoravam-se com acrobacias extraordinárias, giravam sobre cabeças; havia ainda as que partilhavam o sentido de humor negro e irónico dos destinos gregos e nunca paravam de rir, contando as desgraças vindouras como anedotas, pregando partidas com as suas caras pintadas com as cores vivas dos animais venenosos; por fim as criaturas apelativas, que usavam encantos e ilusões para atingirem os objectivos mais condenáveis e sem propósito.
O espectador enamorou-se por um desses. E num êxtase de sucesso, esse elemento do circo da porta aberta agarrou-lhe um fio de loucura e foi puxando. O novelo da insanidade desenrolava-se, emaranhava-se… até que cobriu todo o quarto. Como um gato brincando, só se satisfez quando o novelo era apenas um monte de fio. Entretinha-se enforcando as manias dos outros elementos, rindo das suas fúrias depois. Contudo, o fio, de tanto ser mexido, encolhido, expandido, puxado e solto, perdeu uns centímetros para fora da porta aberta. Nesse momento, dentro e fora do quarto houve um silêncio de vozes e de músculos. Tudo o que antes se mexia congelou numa suspensão de tempo. Era como uma regra que não precisava de ser dita: nenhum dos dois lados ousava trespassar a barreira traçada pela porta.
Finalmente, olhos ergueram-se: os de uma mulher fora do quarto e os da criatura que brincava. Ambas pareciam temer o movimento. Viam-se, realmente, pela primeira vez. O corpo do espectador, pouco desenvolvido ao ponto de ser impossível distinguir-lhe um sexo, encolhia-se contra a parede do fundo. O fio saía-lhe pela cabeça, amarrava-lhe os pulsos e os tornozelos, dando ainda duas voltas apertadas ao pescoço. A mulher pareceu reconhecer aquela criatura débil, como se fossem família.
A mulher arriscou mexer-se, deu um passo em direcção à porta. A criatura, de aparência esguia e feminina, atirou-se ao chão e assanhou-se. Só tinha um olho descoberto, mas era o olho mais cinzento que alguma vez se vira. Fez-se deslizar devagar pelo chão e estendeu a mão para agarrar a ponta fugitiva, sem perder os avanços da mulher. Esta, lenta, cheia de precauções nas pontas dos pés, agachou-se à porta. Ao mesmo tempo, o corpo que deslizava chegou à porta. Ficaram ali quebradas sobre corte de luz e sombra no chão. A mulher alternava o olhar entre a criatura e o corpo infantil. Com as mãos a ferverem de medo, agarrou a ponta do fio.
Tinha agora duas hipóteses: puxá-lo e arrastar para si a criança, ou devolvê-lo ao circo que a aprisionava. Via a criatura a respirar, o ar saía-lhe da boca como se a temperatura fosse negativa. A tensão abalou-as. A criatura não se mexia, permanecia horizontal, por detrás do risco da sombra, com a mão estendida, pronta a puxar o fio. Por seu lado, a mulher mantinha-se na mesma posição, apoiada na ombreira da porta. A mão dela elevava-se a uns centímetros da ponta disputada. Lançou os olhos que caíram sobre a criança, ainda mortificada, e agarrou o fio. A criatura entesou o corpo e pressionou-se contra o chão.
A decisão parecia ter sido tomada. A atenção da mulher penetrou pela escuridão, onde via todos os circenses, tão quietos como julgava os seus familiares atrás de si. Houve uma paragem na sua respiração. Levantou-se, sempre encostada ao seu apoio, sem nunca sair da luz. Já hirta, ao contrário das expectativas, atirou a ponta do fio para a criatura, que saltou para o apanhar. Ao longe pareceu um acto de animal faminto.
A criatura dançou extasiada até se embrulhar no fio. Os circenses festejaram como almas penadas, deslizaram todos eles pelas superfícies do quarto, como sombras, e envolveram o corpo da criança. A mulher deu atenção ao rosto infantil e imperceptível. Viu-o enterrando o pescoço nos braços e nos joelhos e, pouco depois, todo ele foi tapado pelo grupo de sombras.
A criatura responsável pelo fio caminhou para a porta. Os seus movimentos eram sobrenaturais, tão impossíveis quanto os seus olhos. Viu que a mulher lhe virara as costas e se reintegrara na sua família. Percebeu então que lhe fora dada permissão para fechar a porta. Portanto, fechou-a.
Por: Eva Duarte
Eva Duarte é uma jovem escritora portuguesa. Em 2010 publicou o romance infanto-juvenil Angelyraa – Humanidade
de Cristal e o conto A Lua Também Chora. Se pretende obter uma das suas obras, entre em contacto connosco.
Conto publicado na edição #07 da Revista 21
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