Insaciedade. A incapacidade de saciar, o infortúnio do desejar sempre mais. Miséria de espírito, aquele que sofre de insaciedade como Erictão, que se devorou a si próprio. O estômago é o ponto concreto que une corpo e espírito. Um estômago cheio é um espírito feliz. Porém, o que fazer quando o estômago nunca se satisfaz? Viver para sempre infeliz?
Havia, algures numa grande cidade, um homem assim. Sempre fora insaciável, desde bebé. Qualquer peito lhe servia, de facto todos os peitos de leite tinham de alimentá-lo, uma vez que o peito só da pobre mãe faria a criança berrar de fome; da infância à adolescência obrigaram-no a limitar as doses que ingeria. Isto levava-o a uma hiperactividade ansiosa: roía unhas, mordia palhas, abocanhava as pernas dos criados. Certo dia descobriu um acesso clandestino para a cozinha. E, no segredo frio das paredes de azulejo, devorava as sobras das refeições prontas para os cães, doces esquecidos nos confins dos armários, sempre com um requinte sôfrego.
Ora, o menino cresceu. Virou homem corpulento, bem alto e robusto, de nariz altivo. Tornara-se homem de festins. Fazia-os sozinho, na casa de campo da família. Nem criados para lá levava. Passava quase todo o fim-de-semana em branco para absorver cada alimento.
Fartava-se. Fartava-se que nenhum manjar, de nenhuma cultura, da mais cara carne ao mais reles peixe pescado por mãos rudes, o satisfizesse por mais de uma hora. Ansiava mais e já não sabia onde procurar. Comida que daria para alargar os ossos de cinco orfanatos sabia-lhe a entrada. Num jantar de família, algo que o homem abominava - já que tinha de se conter no que ingeria - três convidados juntavam-se à mesa. O homem fingia calma. Uma descontracção tensa regia-lhe os músculos. Falava pouco. Mastigava durante longos segundos, para que a comida lhe soubesse a mais. Queimava, com as pupilas dilatadas, quem ousasse repetir a dose: «Mais nenhuma boca, senão a minha, consegue conceder à comida o devido apreço.» Sorvia com apetite os belos nacos nos pratos vizinhos. Inventariava tudo o que os outros comiam e o que ficara a ele por comer.
No serão, bebendo-se os chás, os cafés e os licores, o homem, nervoso, absorveu-se de olhos fechados. Procurava, ao longe, o aroma da comida. Algo quente, algo frio, algo de doce ou de salgado, algo amargo, picante, acre, encebolado…
Descobriu, por fim, um aroma que não associava a nenhuma comida, mas o cheiro inundava-lhe a boca. Era adocicado, arrojado, um tanto aveludado. Tão morno que contraía a boca do estômago. Quase que lhe cheirava a recheio. Um recheio fresco, roçando-se no exótico. Enfeitiçou-se com aquele odor tremendo. O estômago roncou e o peito ressoou nas paredes: tinha que ingerir a origem daquele cheiro tão ímpar.
Subiu as pálpebras, farejando aquele aroma excitante. Deambulou, seguindo-lhe o rasto. Era imperativo descobrir a fonte de todos os seus saceios. O coração apertava, como nos banquetes dos dias festivos. Sentia-se um cão rafeiro, ali, seguindo o nariz, com receio de não encontrar o que buscava. Intensificou-se, por fim. Voltou a cabeça para a esquerda e parou por instantes para saborear o perfume que o conduzia à loucura.
Excluiu as sobremesas que cruzavam o salão. Não, era algo mais, melhor. Impacientava-se. Os seus olhos seguiam o nariz. Marchava para chegar àquele cheiro agora tão perto, tão mais forte. Arregalou os olhos numa surpresa escandalizada. A origem era uma mulher. Ela, ao vê-lo atarantado, cumprimentou-o por delicadeza. Elogiou-lhe a casa, falou mansa e com boas maneiras.
«Que perfume usa a senhora?»
Perplexa, com as mãos espantadas, colocou um sorriso tímido no rosto e contemplou-o com uma resposta: «Não uso.» Ele pareceu-lhe desapontado.
«Aborrece-o que não use perfume?»
«Nada disso. Apenas possui um cheiro delicioso.»
Ela corou. Ele tomou controlo da conversa, enfeitiçado com aquele odor que lhe traçava a língua. Convenceu-a a acompanhá-lo a jantar, na noite seguinte, na casa de campo. Na noite combinada, recebeu Ambrósia. Chamou-lhe isso, não porque fosse o seu nome, mas porque a equiparava a esse alimento divino.
Sentaram-se à mesa. Ele serviu-os. Deu-lhe gozo, um prazer estonteante, ver a sua Ambrósia comer. A encher as suas curvas torneadas, como fechava os olhos para saborear, como não deixava nada de lado. No último trago do bom vinho, ela levou a mão à testa húmida, com um sorriso fraco.
«Acho que bebi demais…»
«Não, minha adorada Ambrósia. E prometo-te que o sedativo, que tomei a liberdade de aplicar na tua bebida, em nada deve alterar o teu sabor.»
Ela tombou, perplexa e débil, na cadeira, com o sangue escapando-lhe da face. Ele limpou os sedentos beiços ao guardanapo, tranquilo e sereno, e deslocou-se, contemplando, até ao corpo desmaiado de Ambrósia. Cheirou-lhe os fios de cabelo, o pescoço e os ombros. Lambeu e mordeu os próprios lábios.
«Sim, que refeições sublimes darás…»
Havia, algures numa grande cidade, um homem assim. Sempre fora insaciável, desde bebé. Qualquer peito lhe servia, de facto todos os peitos de leite tinham de alimentá-lo, uma vez que o peito só da pobre mãe faria a criança berrar de fome; da infância à adolescência obrigaram-no a limitar as doses que ingeria. Isto levava-o a uma hiperactividade ansiosa: roía unhas, mordia palhas, abocanhava as pernas dos criados. Certo dia descobriu um acesso clandestino para a cozinha. E, no segredo frio das paredes de azulejo, devorava as sobras das refeições prontas para os cães, doces esquecidos nos confins dos armários, sempre com um requinte sôfrego.
Ora, o menino cresceu. Virou homem corpulento, bem alto e robusto, de nariz altivo. Tornara-se homem de festins. Fazia-os sozinho, na casa de campo da família. Nem criados para lá levava. Passava quase todo o fim-de-semana em branco para absorver cada alimento.
Fartava-se. Fartava-se que nenhum manjar, de nenhuma cultura, da mais cara carne ao mais reles peixe pescado por mãos rudes, o satisfizesse por mais de uma hora. Ansiava mais e já não sabia onde procurar. Comida que daria para alargar os ossos de cinco orfanatos sabia-lhe a entrada. Num jantar de família, algo que o homem abominava - já que tinha de se conter no que ingeria - três convidados juntavam-se à mesa. O homem fingia calma. Uma descontracção tensa regia-lhe os músculos. Falava pouco. Mastigava durante longos segundos, para que a comida lhe soubesse a mais. Queimava, com as pupilas dilatadas, quem ousasse repetir a dose: «Mais nenhuma boca, senão a minha, consegue conceder à comida o devido apreço.» Sorvia com apetite os belos nacos nos pratos vizinhos. Inventariava tudo o que os outros comiam e o que ficara a ele por comer.
No serão, bebendo-se os chás, os cafés e os licores, o homem, nervoso, absorveu-se de olhos fechados. Procurava, ao longe, o aroma da comida. Algo quente, algo frio, algo de doce ou de salgado, algo amargo, picante, acre, encebolado…
Descobriu, por fim, um aroma que não associava a nenhuma comida, mas o cheiro inundava-lhe a boca. Era adocicado, arrojado, um tanto aveludado. Tão morno que contraía a boca do estômago. Quase que lhe cheirava a recheio. Um recheio fresco, roçando-se no exótico. Enfeitiçou-se com aquele odor tremendo. O estômago roncou e o peito ressoou nas paredes: tinha que ingerir a origem daquele cheiro tão ímpar.
Subiu as pálpebras, farejando aquele aroma excitante. Deambulou, seguindo-lhe o rasto. Era imperativo descobrir a fonte de todos os seus saceios. O coração apertava, como nos banquetes dos dias festivos. Sentia-se um cão rafeiro, ali, seguindo o nariz, com receio de não encontrar o que buscava. Intensificou-se, por fim. Voltou a cabeça para a esquerda e parou por instantes para saborear o perfume que o conduzia à loucura.
Excluiu as sobremesas que cruzavam o salão. Não, era algo mais, melhor. Impacientava-se. Os seus olhos seguiam o nariz. Marchava para chegar àquele cheiro agora tão perto, tão mais forte. Arregalou os olhos numa surpresa escandalizada. A origem era uma mulher. Ela, ao vê-lo atarantado, cumprimentou-o por delicadeza. Elogiou-lhe a casa, falou mansa e com boas maneiras.
«Que perfume usa a senhora?»
Perplexa, com as mãos espantadas, colocou um sorriso tímido no rosto e contemplou-o com uma resposta: «Não uso.» Ele pareceu-lhe desapontado.
«Aborrece-o que não use perfume?»
«Nada disso. Apenas possui um cheiro delicioso.»
Ela corou. Ele tomou controlo da conversa, enfeitiçado com aquele odor que lhe traçava a língua. Convenceu-a a acompanhá-lo a jantar, na noite seguinte, na casa de campo. Na noite combinada, recebeu Ambrósia. Chamou-lhe isso, não porque fosse o seu nome, mas porque a equiparava a esse alimento divino.
Sentaram-se à mesa. Ele serviu-os. Deu-lhe gozo, um prazer estonteante, ver a sua Ambrósia comer. A encher as suas curvas torneadas, como fechava os olhos para saborear, como não deixava nada de lado. No último trago do bom vinho, ela levou a mão à testa húmida, com um sorriso fraco.
«Acho que bebi demais…»
«Não, minha adorada Ambrósia. E prometo-te que o sedativo, que tomei a liberdade de aplicar na tua bebida, em nada deve alterar o teu sabor.»
Ela tombou, perplexa e débil, na cadeira, com o sangue escapando-lhe da face. Ele limpou os sedentos beiços ao guardanapo, tranquilo e sereno, e deslocou-se, contemplando, até ao corpo desmaiado de Ambrósia. Cheirou-lhe os fios de cabelo, o pescoço e os ombros. Lambeu e mordeu os próprios lábios.
«Sim, que refeições sublimes darás…»
Por: Eva Duarte
Eva Duarte é uma jovem escritora portuguesa. Em 2010 publicou o romance infanto-juvenil Angelyraa – Humanidade
de Cristal e o conto A Lua Também Chora. Se pretende obter uma das suas obras, entre em contacto connosco.
Conto publicado na edição #02 da Revista 21
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