Certo dia, um cego nasceu. Não podia ser um homem – se não era igual aos outros, não era humano. No seio daquela população, que de tão igual já adquirira feições semelhantes, um ser que não fosse uma cópia era decerto um animal. Não o vestiram com o uniforme, que era o mesmo para todos. Criaram-no como um cão, um animal menor ao ser humano, mas como homem que era, como homem se desenvolveu. Andava e falava, limitado pela cegueira e pelos outros, mas em tudo se comportava como Homem. E, assim sendo, aprendeu as palavras deles e, quando maduro o suficiente, chamou-os para que o escutassem. Um veio – portanto todos o imitaram – e foi escutado o que havia a ser dito.
– Escutai o que anúncio! Como eu, outros e mais diferentes virão, de um berço igual àquele de onde nasci. O mundo que conheceis terminará e um novo irá erguer-se. Podeis aceitar ou perecer com o vosso mundo velho. A nova raça viverá.
O desassossego propagou-se. Desconcertados por aquele ser que brotara de prole igual à deles, exilaram-no no local mais escuro que conheciam para que dele e das suas palavras se esquecessem. Era um animal demasiado estranho e acabou por morrer só e talvez louco. Quando um se esqueceu do cego, no colectivo não ficou lembrança do que tinha sido dito.
Um acasalamento seguinte foi concretizado e, nove meses depois, as mulheres deram à luz. Quando as crianças foram vistas pelos médicos, para que pudessem ser criadas em conjunto como era costume, algo sobressaltou a população. Mais animais tinham nascido do ventre humano, como o cego havia profetizado. Uns nasceram com a pele tingida de cor, outros com membros atrofiados, outros mesmo sem um membro e ainda outras deformações.
As palavras do cego ecoaram de onde as tinham enterrado. O medo da condenação da espécie propagou-se e deixaram os bebés à decisão da sorte, para lá das suas terras. Porém, mais tarde, vieram a detectar-se outros animais que a princípio passaram despercebidos; uns surdos, outros mudos, uns coxos. Outros ainda que ficavam anormalmente pequenos, quase desproporcionais, outros desajeitadamente altos. Assustados com a praga semeada nos corpos das suas crianças, deixaram as contagiadas onde haviam abandonado os bebés. Depressa o exílio das crianças passara a ser prática comum e o medo já não os atingia. Sem esses animais com formas humanas a viver entre eles, as palavras do cego jamais se poderiam concretizar. E, em peregrinação quase religiosa, um grupo de homens levava as crianças para a morte. Porém, um desses homens também não era humano, segundo o conceito daquela sociedade. Mas ninguém dava pela sua diferença, pois não era física – havia nascido com consciência. Desde a primeira remessa de crianças exiladas, ele abrigara-as, alimentara-as e assegurava o seu crescimento saudável, sempre para além das terras iguais. Este homem discernia que a diferença não colocava humanos no estatuto de animais, portanto compadeceu-se daqueles indesejados e comprometeu-se a mantê-los vivos. Ensinou os mais velhos a tratarem dos mais novos e assim foram crescendo.
A sociedade sem diferenças estava alheada de tudo. Prosseguiam mecanicamente pacíficos e cada vez mais parecidos. Talvez no início tivesse existido apenas um e o resto fossem cópias. Tudo ali era pensado uma única vez – a primeira. A partir daí, replicava-se o pensamento. E os anos passaram-se desse modo: iguais.
Porém, o profetizado culminou. Já adultos, os homens desiguais revoltaram-se. Viver à parte para quê? Porquê? O homem consciente sempre lhes ensinara que todos eram filhos da mesma Natureza. Quando o pai dos exilados morreu, um exército de homens sem semelhança rompeu pela madrugada. Quando os homens sem diferença os viram chegar, sentiram o sol a ser engolido e nada mais voltou a ser alguma vez igual.
Não aceitando misturar homens e animais, um novo conceito foi pensado e para sempre copiado – a guerra. A recusa culminou em corpos que antes não conheciam outra morte que não a natural. Homens, iguais e diferentes, lutaram entre si. A ira, o ódio e o medo ensinaram-lhes as armas básicas e assim foram matando e morrendo. Assim a profecia se foi concretizando. Restaram apenas três ideais na base da sociedade seguinte, que se construiu apenas séculos mais tarde: o convívio e coexistência de seres humanos diferentes, a inércia perante o que não é igual ou conhecido e a guerra.
A profecia podia não se ter concretizado desta forma. A revelação de mudança podia não ter terminado no extermínio de um povo inteiro. Podiam ter aceitado o novo, o diferente e evoluir. O mundo como se conhecia mudaria, mas podia não ter acabado tão cedo.
– Escutai o que anúncio! Como eu, outros e mais diferentes virão, de um berço igual àquele de onde nasci. O mundo que conheceis terminará e um novo irá erguer-se. Podeis aceitar ou perecer com o vosso mundo velho. A nova raça viverá.
O desassossego propagou-se. Desconcertados por aquele ser que brotara de prole igual à deles, exilaram-no no local mais escuro que conheciam para que dele e das suas palavras se esquecessem. Era um animal demasiado estranho e acabou por morrer só e talvez louco. Quando um se esqueceu do cego, no colectivo não ficou lembrança do que tinha sido dito.
Um acasalamento seguinte foi concretizado e, nove meses depois, as mulheres deram à luz. Quando as crianças foram vistas pelos médicos, para que pudessem ser criadas em conjunto como era costume, algo sobressaltou a população. Mais animais tinham nascido do ventre humano, como o cego havia profetizado. Uns nasceram com a pele tingida de cor, outros com membros atrofiados, outros mesmo sem um membro e ainda outras deformações.
As palavras do cego ecoaram de onde as tinham enterrado. O medo da condenação da espécie propagou-se e deixaram os bebés à decisão da sorte, para lá das suas terras. Porém, mais tarde, vieram a detectar-se outros animais que a princípio passaram despercebidos; uns surdos, outros mudos, uns coxos. Outros ainda que ficavam anormalmente pequenos, quase desproporcionais, outros desajeitadamente altos. Assustados com a praga semeada nos corpos das suas crianças, deixaram as contagiadas onde haviam abandonado os bebés. Depressa o exílio das crianças passara a ser prática comum e o medo já não os atingia. Sem esses animais com formas humanas a viver entre eles, as palavras do cego jamais se poderiam concretizar. E, em peregrinação quase religiosa, um grupo de homens levava as crianças para a morte. Porém, um desses homens também não era humano, segundo o conceito daquela sociedade. Mas ninguém dava pela sua diferença, pois não era física – havia nascido com consciência. Desde a primeira remessa de crianças exiladas, ele abrigara-as, alimentara-as e assegurava o seu crescimento saudável, sempre para além das terras iguais. Este homem discernia que a diferença não colocava humanos no estatuto de animais, portanto compadeceu-se daqueles indesejados e comprometeu-se a mantê-los vivos. Ensinou os mais velhos a tratarem dos mais novos e assim foram crescendo.
A sociedade sem diferenças estava alheada de tudo. Prosseguiam mecanicamente pacíficos e cada vez mais parecidos. Talvez no início tivesse existido apenas um e o resto fossem cópias. Tudo ali era pensado uma única vez – a primeira. A partir daí, replicava-se o pensamento. E os anos passaram-se desse modo: iguais.
Porém, o profetizado culminou. Já adultos, os homens desiguais revoltaram-se. Viver à parte para quê? Porquê? O homem consciente sempre lhes ensinara que todos eram filhos da mesma Natureza. Quando o pai dos exilados morreu, um exército de homens sem semelhança rompeu pela madrugada. Quando os homens sem diferença os viram chegar, sentiram o sol a ser engolido e nada mais voltou a ser alguma vez igual.
Não aceitando misturar homens e animais, um novo conceito foi pensado e para sempre copiado – a guerra. A recusa culminou em corpos que antes não conheciam outra morte que não a natural. Homens, iguais e diferentes, lutaram entre si. A ira, o ódio e o medo ensinaram-lhes as armas básicas e assim foram matando e morrendo. Assim a profecia se foi concretizando. Restaram apenas três ideais na base da sociedade seguinte, que se construiu apenas séculos mais tarde: o convívio e coexistência de seres humanos diferentes, a inércia perante o que não é igual ou conhecido e a guerra.
A profecia podia não se ter concretizado desta forma. A revelação de mudança podia não ter terminado no extermínio de um povo inteiro. Podiam ter aceitado o novo, o diferente e evoluir. O mundo como se conhecia mudaria, mas podia não ter acabado tão cedo.
Por: Eva Duarte
Eva Duarte é uma jovem escritora portuguesa. Em 2010 publicou o romance infanto-juvenil Angelyraa – Humanidade
de Cristal e o conto A Lua Também Chora. Se pretende obter uma das suas obras, entre em contacto connosco.
Conto publicado na edição #05 da Revista 21
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