segunda-feira, 10 de Junho de 2013

Eva Duarte: Erro ou Errado?


Mal podia aguentar o peso das horas. O tempo parecia ter ficado colado ao chão. Talvez preso numa pastilha elástica. A porta abriu-se pelas mãos dela. Afinal não eram horas; eram minutos. O meu coração acelerou cinco batimentos antes de entrar em câmara lenta e esbocei um sorriso que não pude controlar. Entrei.

Tomei o lugar da frente, à distância de uma perna de onde ela estava. O lugar era sempre incontestavelmente meu. Como se tivesse escrito nas tábuas dos mandamentos. Era o único disponível na minha primeiríssima aula, por sorte. E, desde então, marquei-o com o meu cheiro.

Durante a aula, adorava-lhe o porte irónico, os ombros descontraídos e o jeito de como recusava a postura correcta de se sentar – ignorava a cadeira, sentando-se, sem pestanejar perante a rigidez da postura, na mesa, com os cotovelos nos joelhos e os pés na cadeira rejeitada. Também o seu modo de falar me fascinava: conhecimento calibrado pela leitura e um sentido de humor aguçado pela vida marcavam-lhe o discurso. Eu não podia evitar imaginar-me com ela. Quando se calava, a minha mente palmilhava explicitamente os nossos corpos em gozo na sua secretária.

A minha garganta fervilhava em espírito crítico só para me poder debater com ela nas aulas; criava o maior número de dúvidas possível para estar com ela no fim da aula; quase que corria atrás dela para a cumprimentar quando a via na faculdade. Pela expressão dela, acho que começou a suspeitar do que eu não me preocupava em atenuar.

Certo dia, numa pausa entre semestres, cruzámo-nos na rua. Ela ia a entrar num café e eu agi como se fosse praticamente cliente habitual. Pareceu-me incomodada de início, mas depois do café ter sido pedido e a luz de um cigarro ter nascido entre os dedos, recuperou o porte descontraído que a caracterizava.

Passámos uma curta hora a discutir literatura e simples quotidianos. No fim, disse-me que tinha de ir: o marido esperava-a. Sim. Não só era casada como tinha dois filhos, sendo eu mais jovem que o seu mais velho. Eu tinha acabado de sair dos meus desabrochantes dezoito.

Insinuei com mal disfarçada subtileza que queria boleia. Ela, com uma nova aura de incómodo, ofereceu-me a boleia. À porta de minha casa, depois de uma viagem de pouca conversa, – pois era um espaço demasiado íntimo para ela lidar – sem pensar, atirei as minhas mãos ao seu pescoço e beijei-a. Foi rápido porque me repeliu para trás, mas no primeiro impacto – e isto vou para sempre jurar – ela respondeu-me ao beijo.

Quando as suas faces perderam o rubor – não sei se de cólera, se de embaraço, se uma influenciava a outra – ela colou os olhos ao alcatrão da estrada e apertou o volante com os dez dedos. Já não havia rasto de descontracção.

«Eu respeito a tua orientação, pois não se escolhe de quem se gosta, mas não só sou casada como sou tua professora e tu minha aluna.»

Ainda não tinha mencionado que sou rapariga? Hum… não considerei relevante.

«Não vou pedir desculpa.»

Saí do carro tão calma quanto entrei.

***

Pedi que no segundo semestre desse aulas apenas a mestrado. Desde que me beijou não reunia coragem suficiente para encarar a minha aluna nas aulas. Isto fez com que parássemos de nos cruzar. Mas um dia que jamais tecera nos meus pensamentos mais tresloucados desenrolou-se defronte dos meus olhos. O meu filho mais velho quis trazer a namorada para jantar, lá em casa. E – Oh, meu Deus! – era ela. A minha audaz aluna. Creio que perdi noção das cores. Dirigiu-se a mim cordialmente, salientando apenas que tivera duas cadeiras comigo. Tudo me pareceu surreal, escandalosamente normal.

Não sei como aconteceu, mas eventualmente ficámos sozinhas. Não a olhava nos olhos, não ganhava voz para lhe falar. Ela, mais corajosa que eu, falou-me, já não com jeitos e maneiras cordiais, mas com uma agressividade apaixonada.

«Eu sei que também é lésbica! Se preferir, bissexual. Também já estive com rapazes. Se calhar é apenas como eu: gosta de pessoas. E neste momento é de si que gosto! Não me roube isto por medo…»

Quis argumentar, salientar uma vez mais que tinha marido e que era mãe do namorado dela, mas ela calou-me com a língua rodando dentro da minha boca e desta vez não fui capaz de empurrá-la. Desde a primeira vez que me beijou, senti o que achei ser uma réstia de arrependimento por tê-la afastado. Quase bloqueei a minha parte racional e agarrei-a pelos cabelos, apenas para unir mais as nossas bocas. Por pensar nisso, até a palavra boca, com ela, me soava obscena. Mas a racionalidade acabou por acordar e, puxando-a para trás, pelos cabelos – algo que quase acreditei que ela gostou – falei baixo, como se fosse uma coisa horrível: «Eles podem entrar a qualquer altura!»

Detectei-lhe uma paragem na respiração e depois tornou a inspirar como se não o fizesse há meses. Correu para a porta e trancou-a: «Prefiro justificar a porta trancada do que justificar ter a minha cabeça entre as suas pernas.»

Eu morri com aquelas palavras e renasci quando se cumpriram. As minhas calças deixaram de ser a segunda pele das minhas pernas e ela colocou a cabeça exactamente no sítio que prometeu. Descobri, com ela, a oitava cor do arco-íris. Espero ter-lhe causado a mesma impressão, ao retribuir-lhe o acto. E no que decorreu a seguir.

Posso dizer que não fomos apanhadas. Posso também dizer que isto nunca mais aconteceu. Não consigo é dizer se foi pelo perigo, pelo medo da emoção sentida, se pela pura fidelidade que eu julgo dever ao meu marido. Mas só se passaram dois meses. Com ela, sei que poderei ser encurralada numa casa de banho, num corredor vazio, num qualquer acaso. Basta ela querer e tentar, que as minhas pernas cedem-lhe e… abrem-se.

Por: Eva Duarte

Eva Duarte é uma  jovem escritora portuguesa. Em 2010 publicou o romance infanto-juvenil Angelyraa – Humanidade
de Cristal
e o conto A Lua Também Chora. Se pretende obter uma das suas obras, entre em contacto connosco.

Conto publicado na edição #01 da Revista 21

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