domingo, 29 de Dezembro de 2013

Eva Duarte: Corpo, Sangue: Pão, Vinho


A irmã Tereza já conhecia bem o hábito quando a noviça Lourdes foi recebida no convento. As razões pelas quais fizeram os votos não podiam ser mais distantes. Tereza percebia a densidade que existia no silêncio; queria ler. O convento pareceu-lhe apropriado: o ambiente era calmo e tudo lhe era providenciado. Já Lourdes era uma jovem austera, em quem nenhum outro traje que não o hábito era possível imaginar.

Nas horas das orações, Tereza meditava no que havia lido. Se Deus existisse, perdoar-lhe-ia que ela não acreditasse Nele. Cumpria as suas tarefas com uma devoção e uma modéstia equivalentes às que o faziam por fé. Já a grave noviça rezava sempre com um fervor tão apaixonado que coraria o Salvador. Para Tereza, Lourdes surgia-lhe como um vitral sacro; nunca uma imagem de cera ou porcelana – não possuía as dimensões necessárias, nem mesmo a profundidade.

Enquanto Tereza lia, Lourdes olhava-a sempre com uma tensão interrogativa que se afastava das certezas com que olhava a cruz. Facilmente Tereza concluiu que era mais simples à noviça ter certezas do metafísico do que dos corpos materiais. Afinal, eles perdiam-se por dentro dos hábitos opressivos e desfaziam-se na igualdade. No entanto, cada vez que Lourdes lhe dirigia a palavra, ainda que na sua talentosa aspereza, Tereza notava-lhe uma certa admiração que nunca entendeu. Pensou que talvez a noviça quisesse aprender dos seus livros. Portanto, emprestou-lhe alguns.

Lourdes aceitou respeitosamente a oferta. Lia um capítulo cada vez que finalizava uma página da Bíblia. Uma noite, atordoada por um capítulo de filosofia, caminhou incerta dos seus passos até uma imagem em que Madalena enxugava os pés de Jesus com os cabelos. Deteve-se tão rígida quanto o mármore que observava. Estudou a imagem longamente, ao ponto de deixar de ver servidão no acto da prostituta para lhe descobrir amor. Um amor quase antinatural, na perspectiva de Lourdes. Imaginou Madalena a ferver por beijar os pés de Cristo, propondo-se a esquecer de quem ele era filho e a vê-lo meramente como um homem.

Tereza lia e era novamente noite. Lourdes foi bater-lhe à porta, para devolver dois livros que já terminara. A freira mais velha tinha o cabelo preso numa longa trança. Pousou os livros, pouco incomodada com a sua arrumação. Lourdes propôs que rezassem a oração da noite juntas. Ajoelharam-se defronte do crucifixo de madeira pregado na parede e fecharam os olhos. A Tereza não incomodava o acto de orar – se incomodasse nunca teria tomado o véu. Mas surgiu-lhe que nunca tinha visto freira mais apaixonada que Lourdes. Se ela não fosse tão grave, seria quase erótico vê-la rezar.

A oração chegou ao fim. Lourdes levantou-se tresandando a beatice. Tereza sorriu-lhe e pegou num outro livro para lho dar. A noviça olhou severamente para o livro e para a irmã. Tereza não estranhou, toda ela era severidade, até recitando versículos para si mesma. Esperou que Lourdes aceitasse o livro, mas a demora perturbou-a. Lourdes olhava-a com os olhos húmidos e frios. Se soubesse, diria que com o mesmo olhar que há dias olhava Madalena enxugar os pés de Jesus. Com a demora, Tereza hesitou e desistiu do livro. Como se aquela desistência fosse dirigida a si, Lourdes saiu à mesma velocidade com que um vitral se estilhaça.

Passaram-se dias e a noviça não tornara a dirigir-se a Tereza. Com o seu temperamento suave, a freira não dedicou muito ao assunto. Irrompeu, contudo, a acusação de heresia sobre a cabeça de Tereza. Arderia na fogueira, disse-lhe o padre apontando-lhe uma cruz como se fosse uma espada. Decapitaria Tereza com o crucifixo, se pudesse. Tereza agitou-se enquanto as freiras lhe arrancavam o véu da cabeça, descobrindo o seu cabelo ruivo. Bruxa, chamaram-lhe. Herege!

Vestida de negro, mas não de hábito, cabelos soltos pelas costas, amarraram-na a um poste de madeira erguido nas traseiras do convento. Junto com palha, trapos e lenha, os seus livros eram igualmente regados com azeite para a queima. As cordas com que se debatia faziam-lhe sangrar os pulsos. Debatia-se muito, chorava pouco e não gritava nada. Resignou-se: lutar deixara de fazer sentido. Olhou para as mulheres com quem partilhou a clausura durante anos e todas elas tinham a cabeça baixa. Lourdes não. A noviça enfrentava a tocha que se aproximava. Tereza viu que ela não rezava. Por momentos quis que Lourdes começasse a rezar, para prestar a mesma paixão pela sua morte que prestava nas rezas à maldita cruz inerte. Sim, se Deus existisse, seria capaz de perdoar a Tereza que não acreditasse Nele. Nunca tinha sido blasfema, mesmo que não rezasse como as outras. Nunca tinha agido contra os ensinamentos, ainda que duvidasse que tivessem vindo Dele.

A tocha caiu sobre o amontoado de livros e lenha e trapos e palha e deflagrou-se um fogo purificador. As labaredas cresciam – uma língua satânica que absorvia o corpo pecaminoso, para que pelo menos a alma pudesse ser salva. Lourdes observava – não pedia perdão, não rezava. O fogo que salvava a alma de Tereza destruía a sua. Ao tomar consciência de que Tereza morria, correu e atirou-se para o fogo, ajoelhando-se aos pés da freira. Beijou-os através do calor e abraçou-os.

- Perdoai-me…

Tereza julgou que ela falava a Deus. Talvez fosse para Deus.

Por: Eva Duarte

Eva Duarte é uma  jovem escritora portuguesa. Em 2010 publicou o romance infanto-juvenil Angelyraa – Humanidade
de Cristal
e o conto A Lua Também Chora. Se pretende obter uma das suas obras, entre em contacto connosco.

Conto publicado na edição #07 da Revista 21

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