«Mulheres nuas, cães de estimação que consomem haxixe, bebedeiras, tiradas em calão anti-semita e outras passagens que a moral americana das primeiras décadas do século XX considerava impróprias só agora foram devolvidas aos contos de F. Scott Fitzgerald (1896-1940), dos quais tinham sido cirurgicamente removidas.
A Cambridge University Press, que está a editar as obras completas de Fitzgerald, vai lançar esta semana a primeira versão não censurada de Taps at Reveille, o quarto volume de contos do escritor, originalmente publicado em 1935. O livro reúne um conjunto de histórias breves que Fitzgerald publicara a partir do final dos anos vinte na revista Saturday Evening Post, vulgo Post.
Ao longo da sua vida, Fitzgerald escreveu 178 contos, que foi vendendo a várias publicações e que, no total, lhe terão rendido cerca de quatro mil dólares. Pelo final dos anos vinte e início da década seguinte, quando contratou com a Saturday Evening Post a publicação dos contos que viriam a integrar Taps at Reveille, encontrava-se numa situação financeira bastante precária. Aquela que é geralmente considerada a sua obra-prima, O Grande Gatsby, já saíra em 1925, mas só se tornaria um verdadeiro best-seller após a sua morte, em 1940, aos 44 anos.
O coordenador desta nova edição, James West, professor na Pennsylvania State University, sublinha, em declarações ao jornal britânico The Guardian, a importância do trabalho de reconstituição que permitiu recuperar os textos originais do autor: “Queremos ler o que Fitzgerald escreveu, e não o que os editores da Post acharam que ele devia ter escrito”.
Mas não censura os responsáveis da revista. No prefácio ao volume que coordenou, escreve: “Eram estas as regras do mercado: Fitzgerald era um autor profissional, e aceitou-as”. Observando que a revista se dirigia à classe média e evitava o que pudesse ofender os seus leitores e anunciantes, West exprime a convicção de que Fiztgerald teria perfeita consciência de que estava a incluir “expressões e situações” que iriam ser “atenuadas ou apagadas pelo lápis azul".
Ao contrastar as versões publicadas dos contos de Taps at Reveille com os dactiloscritos, bastante emendados à mão, que Fitzgerald enviou ao seu agente literário, Harold Ober, West constatou que as diferenças eram significativas. Por exemplo na história intitulada "Two Wrongs", o protagonista, Bill, chama a um seu interlocutor de ocasião “dirty little kyke”. A palavra “kyke” é um termo de calão depreciativamente dirigido a judeus, tal como “sheeny”, que Fitzgerald emprega num diálogo do conto "The Hotel Child", e que os editores da Post substituíram por “judia”.
Nessa mesma história, foi suprimida a passagem em que o marquês Kinkallow alimenta sub-repticiamente o seu cãozinho pequinês com haxixe. E em "Two Wrongs", quando a mulher de Bill se despe para tomar um banho, depois de um treino de ballet, os pudicos editores da revista acharam melhor rasurar essa cena potencialmente erótica.
Foram também impiedosamente cortados termos como “broads” aplicado a mulheres, obscenidades tão triviais como “Get the hell out of here!”, e outras tentativas igualmente inocentes de pôr as personagens a falar como as pessoas efectivamente falavam na América da época.
Ao serem repostas todas estas expressões e passagens suprimidas, alguns dos contos, defende West, “fazem agora muito mais sentido”. Em "Two Wrongs", por exemplo, o anti-semitismo do protagonista e o modo repreensível como trata a mulher justificam mais claramente, argumenta, que este venha a ser punido pelas suas más acções.
West lembra ainda que um dos lugares-comuns da crítica a Fiztgerald era a sua alegada tendência para evitar tópicos desagradáveis e a sua relutância em usar uma linguagem realista. “Podemos ver agora”, conclui West, que nada disso foi escolha sua”.»
Via Público.
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