domingo, 7 de Julho de 2013

Eva Duarte: Loucura Branca


Respira e estremece. Sensações de recém-nascido. Ainda com os olhos pregados, ganha a noção de um espaço vasto e despido. Só chão. Um frio horizontal e regular, do polegar do pé à testa.

Estava vestida em farrapos. Restos de roupa que nunca deixaram de ser tecido sem bainhas. Um peito de fora em estilo de amazona, pernas e braços nus, com uma toga de trapo incompleta e suja. Não sabia como tinha chegado àquele sítio tão despido quanto ela, muito menos de quem ela seria.

Desajeitada e desorientada, com o céu-da-boca sabendo a branco, desenhou um trajecto desequilibrado até à porta que parecia estar desligada de paredes. Do outro lado da porta, um labirinto de portas. Sentiu um medo picante na boca do estômago e uma insegurança ansiosa na ponta dos dedos, como se andasse sobre uma corda a vinte metros do chão. Contudo, sentia-se forçada a dar sempre mais um passo adiante.

Passou por portas e portas com receio de abrir alguma. O passo tornou-se amedrontado, depois histérico. Corria e as portas adiantavam-se aos seus passos. Martelou os olhos com as mãos e gritou no isolamento. Atirou-se contra uma porta e fechou-se do outro lado. De cabeça escondida entre os braços, contra a madeira, gania soluços. Sacudiu-se e o corpo tratou, como boa máquina que é, de estabilizar a respiração.

Ousou olhar para a divisão. Nada à excepção de um espelho simples de corpo inteiro. Tremendo de frio ou medo, em desespero, aproximou-se do espelho como se reflectisse uma resposta. Os lábios gretados tornaram-se no epicentro de algo anónimo que lhe vibrou pelo corpo todo. Não chegava a sentir pavor. Só repulsa. No espelho, uma imagem deformada de si. Presa naquele reflexo grotesco, pensou que era, de facto, a sua imagem. Não parecia conhecer-se o suficiente para negar aquele gracejo de defeitos.

Escutou-se algo a ressoar na ausência de paredes. Soava a chuva. Exércitos negros e minúsculos formavam fileiras que corriam na direcção dela. Tudo se via e movia exclusivamente no espelho. Insectos. Patas da grossura de um fio de cabelo que picotavam o chão e soavam a chuva. Uma tempestade deles escalou-a e vestiu-a de quitina. Ao longe, não passavam de lantejoulas pretas. Por mais que ela se sacudisse e gritasse, os rastejantes apressavam uma entrada nela. Boca, nariz, orelhas, tudo lhes era passagem. Entretanto, a rapariga já não gritava, entretanto já chorava asas de mosca.

Coçando-se, tentando abrir o ventre cheio com as unhas, caiu contra o espelho de costas. Abriu os olhos, sentiu-se vazia e, rebolando pelos estilhaços, saltou e atravessou a porta. De novo no corredor, quebrou a maçaneta com murros e dentadas. Bateu com as costas com força contra uma parede, para se sacudir da impressão dos insectos, parando apenas quando uma pontada pareceu penetrá-la da espinha ao esterno.

Uma hora depois, desistiu de deambular pela monotonia de rectângulos com maçanetas. Abriu outra porta com uma violência bárbara, como fosse agarrar os cornos de um animal irado. O chão estava forrado com carpetes de lâminas. Petrificou com os cortes nas solas dos pés. O rosto humedeceu-se e, julgando chorar, passou as costas das mãos pelas bochechas. Congelou ao verificar que vertia sangue dos olhos, sem dor aparente.

Enquanto despejava o veneno dos insectos em ouro vermelho, uma pressão dolorosa vincou-lhe os braços, como se existisse vácuo nos seus membros. Contou uma cicatriz na vertical em cada braço, em carne tão lisa como só pele regenerada consegue ser. Ainda não se tinha apercebido das marcas nos seus braços. Os joelhos cederam, enquanto as feridas reabriam sozinhas, com a mesma velocidade de um sol a nascer. As lâminas frias rasgaram-lhe a carne e pareceram-lhe tão familiares como apêndices seus.

Uma cólera crescente vestiu-lhe as entranhas e de mãos bem abertas raspou o chão. Lâminas saltaram como lava cuspida. Cerrou tanto os dentes em fúria e desespero que as têmporas latejaram. Sem ter de enviar ordens às pernas, elas ergueram-se como molas e, num berro, a rapariga abandonou outra porta.

Quase que se podia dançar a valsa ao ritmo do seu batimento cardíaco. Tum tum. Tum tum. O som das solas dos pés nuas no chão irritava-a. O eco dos seus passos substituía a sombra que não tinha. Um duplicado da sua existência. A réplica necessária, a prova de um corpo.

Arriscou uma última porta. Caminhava já sob insónias e preferiu ousar outra passagem. Silêncio. Esta era calma. Sossegada. Avistou outra porta no fundo da sala vazia. Correu para lá, julgando ser a saída. A mesma serenidade que na sala anterior. Uma outra porta oposta àquela por onde entrou. Outra sala. Outra porta. E de novo. Sala. Porta. Sala. Porta. Sala. Sala. Porta. Porta. Porta. Gritou!

A sucessão irreal de espaços copiados condenou-lhe a esperança ao desespero. Precisou de inspirar para preencher o buraco no seu corpo. A cabeça parecia dispersar-se em todas as direcções como tentáculos de polvo. A pele parecia-lhe derreter por baixo dos dedos que se amarelavam ou acinzentavam – derretida e engolida por uma sala sem estômago.

Vozes. Vozes estendidas pela sala solidificaram-na. Olhou em frente e não viu uma nova porta. Viu um quadrado de vidro, pelo qual nascia uma luz. Não era branca ensandecedora. Era mesmo cor de luz. Viva e natural. Correu e o chão não lhe escorregou por baixo dos pés. Espalmou-se contra o vidro e viu viver. Mas viu um viver caótico. Descontrolado, de tão vivo. As vozes intensificaram-se. Eram berros. Entranharam-se na carne e tornaram-se gestos silvantes.

A vista dela era igual às das janelas dos apartamentos no rés-do-chão. A janela era uma lente dos seus próprios olhos. As mãos eram as suas, as cicatrizes gémeas às dos seus braços, os rostos gritantes tinham algo de familiar... Sentia a tensão dos músculos que via mexer, mas que nela não mexiam. O seu corpo era a sua masmorra. E a sua mente um labirinto de portas. E, o que quer que ela fosse, era alheia do controlo físico. Ela era a sua própria plateia.

Recuou trémula. Era uma palha quebradiça de carne. Sentiu-se em simultâneo invadida e invasora de si. Recuou absorvendo os passos, apagando o trilho dos seus pés. Recuou até uma parede a impedir de recuar mais. Colocou o corpo em paralelo com a parede. Segurou-se hirta e tensa. Viu tudo âmbar. Cheirou-lhe a algo distante de resina e perto de verniz. Sentiu uma compressão sufocante nas costas e no peito. A boca sabia-lhe a lascas de madeira. O umbigo saltava-lhe para fora pela força exercida sobre ela. De repente, ela era uma passagem dela mesma. Mais uma porta daquele labirinto de portas.

Por: Eva Duarte

Eva Duarte é uma  jovem escritora portuguesa. Em 2010 publicou o romance infanto-juvenil Angelyraa – Humanidade
de Cristal
e o conto A Lua Também Chora. Se pretende obter uma das suas obras, entre em contacto connosco.

Conto publicado na edição #02 da Revista 21

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