Miguel de Matos Valério: Diz-me, Amigo
Miguel de Matos Valério ficou em quinto lugar no Concurso Novos Autores - Revista 21/Bertrand. «Diz-me, Amigo» é, como o próprio nome indica, uma acusação. Centrado numa única acção, mas recordando outras, o conto utiliza uma linguagem informal, propositadamente repetitiva, própria de um narrador sedento de vingança que nos convida a assistir a um assassinato.
Amigo. Via-te todos os dias à mesma hora com as mesmas (eram as tuas, sim, que eu sei) mãos nos mesmos bolsos, ainda que as calças fossem mudando de cor e de feitio.
Caminhámos, tanta vez, juntos encostados à parede negra, de sede. Discretamente levávamos o punhal erguido, simultaneamente retraído entre a palma suada de nervosismo e a manga comprida do casacão, grosso e pesado. O punhal ensaguentado encostado à perna direita, esperando que um dia eventualmente tomasse a coragem que a ti te era subtraída, a coragem. Até isso, meu amigo, te tiraram – embora nunca a tivesses tido. Um dia, em que não estivesse nos seus, te esventrasse como a um porco, bem fundo na «guelra», enquanto te puxava o rabo e chamasse por alguém que se atirasse sobre as tuas costas para te prender os movimentos. Tu esventrado com um punhal bem fundo na «guelra», de ventre aberto, nem materno nem paterno, mas de um grande filho da puta que és! Nós bem o sabemos. Amigo. Quando te ouvi cantar aquelas músicas do querido menino, encarnado de sangue preto, a escorrer pelas mãos e braços que sabiam que nunca seriam vencidas. Amigo, tinha-te bem junto ao meu peito, à minha memória. E tu sabias, porra. E porque me traíste? Porque nos traíste? Ainda hoje sinto o frio da longa espera, até amanhecer, por debaixo daquele orvalho, encostado à parede caída. Ainda hoje sinto o frio da lâmina enferrujada da navalha a cortar-me o nervo, a ponta incandescente do cigarro a queimar um percurso na minha testa, no meu ombro. Tatuar. Marcar. Magoar. Mas diz-me, que ainda não o fizeste. Diz-me, aí encolhido, amedrontado agora, diz-me: porque me traíste tanto? Hoje, o teu filho faz o mesmo. Já não canta essa música desafinada. Já não se esconde no beco sujo, à espreita. Prefere encostar-se a um poste de um candeeiro. É mais iluminado, dizia ele. Puxa da pala do seu novo casaco para enganar o vento que faz mover lentamente os louros pêlos das orelhas. E mesmo quando lhe peço lume, responde-me com a mesma avidez de sempre, que não tem, que não fuma. Mas diz-me amigo, porque fizeste tu uma coisa dessas, deixar-nos desamparados no meio do largo, cercados de guardas, pobres mas enfurecidos. Porquê?
Mesmo sabendo tu que o teu filho te persegue (ao teu passado, claro) diz-me, amigo, porque o fizeste? A consciência da tua resposta deixa-me triste. Não por o teres feito. Isso só me poderia deixar sem um sorriso na cara e calor nas mãos. Por continuares a fingir que nada se passou. A ignorar. Diz-me, porque o fizeste? Diz-me antes que te vás e já não o possas fazer. Antes que enterre o resto do punhal, até onde possa sentir pela primeira vez o teu quente interior, já que não fazes voluntariamente de outra forma. Diz-me antes de poder tocar nessas tripas gordurosas e ensanguentadas. Diz-me, amigo, porque o fizeste? Diz-me, amigo, porque continuas calado? Uma e outra e sempre vez. Continuamente. Diz-me porque viras a cara e finges que nada sabes. Que nada há além dessa tua triste sobrevivência. Diz-me, amigo, porque te calaste?
Texto: Miguel de Matos Valério
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