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Isabel Jacinto: Manifesto da Vertigem



Isabel Jacinto ficou em quarto lugar, mas poderia facilmente ter entrado no pódio do Concurso Novos Autores - Revista 21/Bertrand. O seu «Manifesto da Vertigem» retrata o amor à música de uma forma verdadeiramente criativa, invocando nas magníficas passagens descritivas uma intensidade que nos transporta para a «vertigem» como se também a vivêssemos.


À medida que a loucura me afastava da realidade, aproximava-me do mundo ao qual pertencia a mulher da minha fantasia. A boca dela surgiu-me pela primeira vez ao som do meu piano, por entre o fumo de charutos. Eu sabia que ela era um produto da minha imaginação, só não sabia se tinha começado assim. De qualquer forma, para mim, o começo de tudo é a música. A música é a forma primitiva mais civilizada que temos para comunicar e eu era fluente em todos os seus acordes. Mas enlouqueci. Agora, sempre que toco, deparo-me com duas escolhas que não são mais que teorias minhas: ou a loucura me permite criar algo intenso, ou a minha criação soa-me melhor devido à loucura. Opto por não optar e entrego-me meramente à intensidade.

Enlouqueço por necessidade, por ser a única porta que me leva até ela. Já a música é a minha ponte e nossa intérprete: essa mulher só aparece quando toco, portanto toco até à exaustão. A música vive da vertigem. Torno-me intemporal ao abandonar-me a um corpo incompleto e faço amor com a ideia que me escraviza, com a mulher da boca escarlate. Faço-o em cima das teclas do piano, para que a música nunca pare. Comovo-me pelo alcance que tenho do seu corpo e desaperto-lhe o vestido com os dedos em sangue. Como nunca, fui um revolucionário: entreguei-me à felicidade.

A loucura apagou-me e amanheceu pela primeira vez em meses. A luz deitou-se sobre mim. A mente insana baloiçou-me na realidade sem nunca repor os pés no chão, porém foi-me impossível afastar-me da mortalidade. A melodia não se pode agarrar porque música é tempo. E o nosso expirou e não sei se a boca dela ainda é rubra como dantes. Morremos os dois no meu corpo: a ilusão é uma qualidade humana, portanto a mulher dos lábios escarlates morreu comigo.

Em vida, dividi-me entre música e não-música, mas na morte não há piano nem tão pouco ilusões.

(Um aparte: penso que a morte desejaria ascender à condição de música, ou talvez seja eu quem o queira, pois perdi a minha amante. Contudo, se ela alguma vez começou por ser mulher real, a nossa união é uma questão de tempo. Preencherei a eternidade com a espera.)

Texto: Isabel Jacinto

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