Letras 21: A Verdadeira História de Alice
Popularizada pela Disney, Alice assumiu-se, com o passar do tempo, uma verdadeira figura de culto, cuja história ultrapassa em muito o domínio infantil. Tudo começou com a busca pela origem do coelho branco. Conheça agora a verdadeira origem de Alice.
Texto: Tiago Matos
Charles Lutwidge Dodgson era um homem estranho, até para os padrões de Yorkshire, em meados do século XIX. O terceiro de 11 filhos nascidos do casamento de quatro anos e meio entre Frances Lutwidge e o reverendo Charles Dodgson (primos em primeiro grau) era conhecido por ser um rapaz extremamente nervoso, com uma gaguez característica e uma apetência particular por Lógica e Matemática.
Aos 18 anos, viu-se matriculado em Christ Church, uma faculdade religiosa de Oxford, na qual acabaria eventualmente por se tornar professor. Nos tempos livres entretinha-se a escrever, inventar e principalmente fotografar. De facto, apesar do insólito talento matemático, a grande paixão de Dodgson era mesmo a fotografia. Gostava especialmente de usar crianças nuas como modelos. Sempre do sexo feminino. Nada de excessivamente invulgar: na época vitoriana a nudez infantil era utilizada com frequência como tema artístico. Dodgson, porém, deixava-se fascinar pelas crianças retratadas, enviando-lhes cartas e procurando a sua constante companhia. Eram «paixões» breves e ditas inofensivas, mas juntavam-se a um óbvio desinteresse para com pessoas adultas numa associação potencialmente preocupante.
Apesar de tudo, a sua vida centrava-se na rotina. O génio matemático estagnara numa carreira despretensiosa e tudo o resto eram hobbies. Assim existiu Dodgson até que, aos 24 anos, assistiu, da janela do seu quarto, à chegada de Henry Liddell, um novo reitor para a faculdade. Vinha acompanhado da esposa e de quatro crianças: Edward, Lorina, Edith e Alice. Na altura estava longe de o imaginar, mas por influência desta última, Dodgson havia de se transformar numa figura lendária, de nome Lewis Carroll.
A origem de Alice
Alice começava a sentir-se aborrecida, sentada no barco, ao lado das irmãs, sem nada que fazer. Tinham ido passear com dois novos amigos da família, Charles Dodgson e o reverendo Robinson Duckworth, mas as belas vistas do rio Ísis não eram suficientes para a sossegar, e a certa altura, procurando uma distracção, resolveu pedir a Charles que lhes contasse uma história «completamente absurda».
Dodgson resolveu improvisar, narrando as aventuras de uma menina de 10 anos, chamada Alice, num mundo bizarro, repleto de elementos alegóricos e personagens invulgares. A história agradou de tal forma às três pequenas ouvintes que, no final, Alice lhe pediu a transcrição da mesma para papel. Satisfeito com a recepção, Dodgson passou os dois anos seguintes a trabalhar nas peripécias de Alice Debaixo da Terra (nome original do conto), alterando cenas e adicionando personagens. Percebendo que podia utilizar o nonsense a seu favor, aproveitou também para inserir um conteúdo subliminar de crítica social, inspirando-se na sua própria vida e naquilo que o rodeava.
No Natal de 1864, ofereceu o prometido manuscrito a Alice, como presente. Um ano depois, motivado por um amigo, publicou-o, assinando com o pseudónimo Lewis Carroll (sempre negou ter sido ele o autor da obra), e intitulando-o de Alice no País das Maravilhas. Seis anos mais tarde, lançou a sequela: Alice do Outro Lado do Espelho.
Os 13 diários
Durante a escrita dos livros, Dodgson tornou-se muito próximo das crianças Liddell. Costumava enviar dezenas de cartas a Alice, e eram frequentes os seus longos passeios e as sessões fotográficas com as três irmãs. Preocupada com a natureza da relação, a mãe, Lorina (partilhava o nome com a filha mais velha), pediu-lhe cautelosamente para dar algum espaço, e Dodgson pareceu consentir. Contudo, pouco depois, aproveitando a ausência, em férias, dos pais das crianças, voltou a introduzir-se na casa. Furiosa, Lorina proibiu as filhas de o voltarem a ver sem acompanhamento de terceiros. Dodgson respondeu a isso, enviando-lhe uma carta a exigir que as enviasse para serem fotografadas. Ninguém sabe o que se passou a seguir.
Dodgson manteve um diário durante toda a sua vida, tendo escrito um total de 13 volumes. No entanto, após a sua morte, o primeiro, terceiro, sexto e sétimo desapareceram, e várias páginas dos que ficaram foram também deliberadamente arrancadas e modificadas (crê-se que pela própria família dele), como que para encobrir algo. A relação de Dodgson com a família Liddell foi apagada a partir daquele ponto, e quando se retoma a narração, este está há seis meses sem os contactar, retornando no final do ano para uma visita, mas denotando muito menos entusiasmo que anteriormente.
Muitas teorias foram avançadas para completar as páginas desaparecidas: há quem diga que Dodgson terá pedido Alice em casamento, quem afirme que a verdadeira paixão dele era Lorina (irmã de Alice, com 13 anos na altura da história no barco), e até quem ache que ele apenas usava as crianças para chegar até à governanta da casa. Fica a certeza que alguma coisa se passou, mas todas as explicações possíveis não passam de suposições sem resposta, até porque todas as cartas enviadas a Alice foram destruídas e o biógrafo de Henry Liddell foi proibido de fazer qualquer referência a Dodgson na sua obra.
Curiosidades de Alice
Os principais temas de Alice são o crescimento e a busca de identidade e consciência social num novo e estranho mundo. Com isso em mente, Carroll decidiu introduzir vários simbolismos sociais e educacionais no conto.
Alguns exemplos:
- A Raínha de Copas (uma paródia a Victoria I) personifica a irracionalidade do poder em geral, tanto a nível governativo como judicial.
- A história da Morsa e do Carpinteiro critica igualmente a classe política, que convence os seguidores com promessas maravilhosas, rumo a um futuro negro.
- Humpty Dumpty, o ovo engravatado no topo de um muro, representa a burguesia da altura, e a insegurança da sua posição.
- Na Festa do Chá, o Rato Sonolento dá a Alice uma pequena lição de relações inversas na Matemática: «Isso é o mesmo que dizer que “Eu vejo o que como” é igual a “Eu como o que vejo”».
- Quando Alice está no seu estado gigante, a Pomba acusa-a de ser uma serpente, mesmo após esta lhe jurar ser uma menina pequena. O raciocínio da Pomba é algo como: «As meninas pequenas são pequenas. As serpentes são grandes e comem ovos. Tu és grande e comes ovos. Logo, tu és uma serpente». Um apontamento de Lógica.
- O tema «droga» está também bastante presente na obra. A Lagarta Azul a fumar de uma hookah e a avisar que os cogumelos poderão tornar Alice maior («high» = pedrada) ou menor (deprimida) é um dos mais óbvios, tal como a bad trip de Alice, no início, que dá origem ao mar de lágrimas.
- O último capítulo de Alice do Outro Lado do Espelho é um acróstico: a combinação das primeiras letras de cada frase forma o nome «Alice Pleasance Liddell».
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