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Eva Duarte: Génesis


Isto que te vou contar tem início muito antes de qualquer um de nós. Começarei pela lenda que passou de geração em geração e servirá como contexto. No início, o mundo era novo e inexperiente em vida. Portanto, a deusa mãe estendeu os seus quatro braços e dançou pela primeira vez. As linhas do seu corpo formavam imagens tão belas que os céus emocionaram-se. A chuva caiu e misturou-se com a terra. Sem descanso, a deusa mãe moldou dois corpos da lama. Copiou as suas próprias curvas em ambos os corpos, dando-lhes, porém, apenas dois braços. Queria-as incompletas, para necessitarem uma da outra. Quando terminou, soprou-lhes para as bocas e deu-lhes o primeiro fôlego.

Assim nasceram Lilith e Eva. A grande mãe abençoou ambas com tudo o que precisavam de saber para sobreviverem. Antes de partir, transmitiu-lhes os rituais sagrados da procriação, de modo a tornarem-se autosuficientes. Rapidamente, Lilith e Eva amaram-se – equilibravam-se e eram as únicas a povoar a terra. Amarem-se era uma necessidade por falta de opções, mas isso não tornou o seu amor menos real; era apenas o único que existia. Só conheciam o que sentiam uma pela outra e o que sentiam pela grande mãe. Portanto, não havia espaço para lhes julgar a forma de amar.

Na sua primeira menstruação, sabiam que estavam prontas para realizar o ritual de procriação. Acenderam a fogueira, queimaram nela flores brancas manchadas com sangue menstrual e dançaram para a grande mãe. Era suposto entregarem os seus membros à irracionalidade da dança, os seus corpos queriam-se tão selvagens como quando faziam amor e tinham de terminar ajoelhadas junto à fogueira, de braços erguidos ao céu. E assim, ao fim de nove meses nasceram as suas filhas. Gerações depois, cá estamos – tu e eu, criança.

Eu sei que precisas de perceber por que fugimos, mas este enquadramento é importante, não só porque é meu dever contar-to, tal como a minha mãe me contou, mas para que entendas a nossa situação agora. As nossas origens são importantes e deves-lhes honras, mesmo que tenhamos entrado num mundo novo. Bem, agora contar-te-ei da vida como me lembro. Estávamos bem adaptadas ao meio, pescávamos, caçávamos, dominávamos todas as ervas – as que matam e as que curam. Só a grande mãe sabe como algumas nos apaziguam as dores do parto. Passávamos grande parte do nosso tempo fora de guerras, era-nos mais agradável fazer amor. Era dessa forma que mais frequentemente prestávamos adoração à deusa mãe e isso deixáva-a feliz. Em alturas de grande excitação, ela juntava-se à euforia. No fim, dava-nos a honra de dançar para nós com os seus maravilhosos quatro braços. Nunca vi dançarina mais elegante. Não admira que ela tenha emocionado os céus.

Porém, desiludímos a nossa deusa. Afinal, fomos feitas de matéria impura – água e terra conspurcadas. Se tivéssemos nascido de um só elemento, podíamos ser menos imperfeitas. Mas não penses que critico a grande mãe, ela sempre conseguiu perdoar todos os nossos erros. Excepto este... tenho de limpar estas lágrimas, não é? Se não houvesse erro, não te teria agora, minha criança. Como já percebeste, as instruções eram simples. Completávamo-nos umas às outras, éramos livres de amar e escolher quem amar e, quem quisesse procriar, só tinha de participar no ritual quando menstruada e a grande mãe abençoava-nos com uma criança. Mas nunca pensei que a determinação de algumas as levasse a tentar iludir a deusa mãe.

O orgulho exacerbado leva-nos a julgar-nos capazes de ludibriar qualquer um, mas esta rapariga quis enganar a própria deusa. Ela, uma jovem de dezasseis, pecou por orgulho e desespero. Ainda não tinha sido abençoada com o sangue fértil, mas queria ser mãe, pois muitas da sua idade já tinham tomado essa decisão. Traçou então o plano que nos levaria a todas à desgraça. Como se não bastasse, teve medo de agir sozinha, portanto convenceu um grupo de crianças para se lhe juntar. Uma hora antes do ritual, ela guiou-as até ao mato e lá caçaram coelhos e aves pequenas. Mataram a modesta caça e, com o sangue dos bichos, imitaram a benção da fertilidade. Juntaram-se ao ritual em grande júbilo e mancharam as flores brancas com o sangue roubado, dançando com as restantes.

O ritual terminou e durante os nove meses que se seguiram notámos uma estranha ausência da deusa mãe. Jamais esquecerei os gritos das parteiras ao darmos à luz. A anatomia da criança era-nos estranha, vinha com um apêndice como nem as anciãs alguma vez tinham visto. Choravam como bebés normais, mas o discreto delta vinha saído para fora, como um inchaço anormal. Pensámos que as crianças tinham nascido doentes, portanto rezámos à deusa.

Ela desceu até nós e ouviu-nos com um pesar profundo, que lhe morria nos olhos e nascia no coração. Sem precisar que acabássemos de falar, tomou a palavra. Disse-nos que alguém tinha profanado o ritual com sangue impuro, com a esperança de a enganar. O desapontamento e a incompreensão da deusa era-nos palpável. «Porque enganaram quem sempre vos amou? Dei-vos tudo, filhas, excepto a imortalidade, mas só porque me foi impossível. Agora deixo-vos, porque a vossa traição condenou-me à morte. Isso que têm nos braços é um ser imperfeito, resultado da profanação. Agora, serão obrigadas a uma separação dolorosa da espécie; chamar-vos-ão mulheres e a eles homens. Para poderem procriar daqui em diante, terão de se unir a eles. Não me tornem a chamar; o meu poder enfraqueceu por me terem oferecido sangue de animal.»

E a guerra culminou. Vozes exigiram a morte das culpadas, mas muitas delas tiraram a própria vida primeiro. Crianças foram mortas, rejeitadas. Foi uma questão de tempo até que as opiniões contrárias se defendessem com a espada. Foram exigidas demasiadas vidas, meu filho, portanto fugi para que mantivéssemos as nossas. Lamento que não conheças a deusa mãe, mas decerto terá nascido um novo deus, que ame ambos homens e mulheres.

Por: Eva Duarte
Eva Duarte é uma jovem escritora portuguesa. Em 2010, publicou o romance infanto-juvenil «Angelyraa – Humanidade de Cristal» e o conto «A Lua Também Chora».

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