Eva Duarte: O Limite da Expressão
Uma vez que a obra é, na sua finalidade, inútil, o mínimo que o artista pode fazer é dar-lhe um sentido, um significado, uma sensação. Todavia, há sempre quem tenha toda a técnica e a aplique da forma mais sublime, sem conseguir qualquer extracto de impacto. Criam-se assim obras mortas e elas moldam artistas frustrados. Este homem é um bom exemplo. Aqui está a parte mais importante da sua vida.
O primeiro passo que tomou foi contratar a modelo perfeita, uma bacante dos tempos modernos. Na sua mente, o cenário estava finalizado: a rapariga posaria nua, numa manta de veludo encarnada, para lhe contrastar com os olhos negros. O homem estava convicto de que desta vez não lhe recusariam o quadro, pois ninguém seria capaz de resistir à sedução que emanaria daquele objecto inútil.
A sua ninfa despiu-se e posou com a naturalidade própria de uma musa. Enquanto isso, preparavam-se as tintas e as telas. Mas depressa a simplicidade da sua ideia não coube nas telas: arruinou-as, uma atrás da outra. O pincel nada exprimia e o futuro quadro não rompia daquele fundo branco. Aquele fundo estava a medir forças com o seu pincel e estava a ganhar. A modelo mostrava sinais de exaustão, por outro lado o artista fazia-se nervoso, engolindo e mastigando convulsões ansiosas. A jovem sentiu as entranhas do homem prestes a diluírem-se debaixo da pele e propôs que continuassem no dia seguinte. O homem exaltou-se com a proposta – com o insulto – e derrubou o cavalete com uma só mão. Desde quando as modelos podiam opinar assim? Elevou a voz e sujou a boca com toda a espécie de insultos. Depois calava-se, mordia-se e parecia chorar de raiva e desespero, com as duas mãos pressionando as têmporas. Fazia-se vermelho, como se o sangue lhe quisesse rebentar das veias, e brilhante das lágrimas, da baba e do suor.
A situação estava descontrolada. A modelo apavorou-se e pegou na roupa perante ela, dirigindo-se para a porta. Ele correu e barrou a passagem: os dois corpos embateram um contra o outro. Cândida na sua nudez, ela reduziu-se a pedidos, repetindo «Amanhã, amanhã». Ela sinceramente esperava que a lucidez despertasse no génio dele, mas o controlo já não era um bem garantido naquele espaço. Ele pegou-a pelos braços e atirou-a de novo para a manta, arrancando-lhe primeiro a roupa das mãos. Puxou-a pelos cabelos, culpou-a pelos sucessivos insucessos e esbofeteou-a. Reergueu o cavalete e preparou uma nova tela. Iniciou o esboço. Olhou para a modelo por cima da obra e irritou-o o choro assustado dela, os caracóis desgrenhados e o corpo descomposto. Repreendeu-a num tom gutural e ela tornou a suplicar que a deixasse ir.
Ele encolerizou-se de vez. Pegou num frasco de tinta e, com um pincel, cobriu-lhe o corpo de bordo, enquanto ela berrava e gemia; o pincel marcava-lhe as pernas, os braços, o tronco e até a cara. Mas ela não se calava, e o seu grito era o rastilho da insanidade dele. Ele cegou e só pensava em calá-la, portanto puxou-lhe a cabeça para trás através do cabelo e despejou-lhe a tinta na boca.
- Bebe! Engole! Entranha a arte que te ofereço e devolve-ma em inspiração!
A tinta escorria na goela, por dentro e por fora. Quando o frasco ficou vazio, atirou-o com uma força atroz à testa dela, abrindo-lha em escarlate. Com o resto da tinta na escova do pincel, atingia-lhe o ventre com estocadas. Numa mais fervosa, penetrou-lhe o ventre do lado esquerdo. Decidiu não retirar o pincel. Recuou, apático, e viu-a morrer por entre um apogeu de cores quentes.
Tornou a instalar-se atrás do cavalete com uma tela em branco. Depois de ter assistido à morte da sua bacante, a tela em branco não o parecia assustar tanto como de início. Com uma ausência de espírito, pintou imparável até à madrugada seguinte um quadro que sobreviveria séculos, eternamente inútil e intenso. A violência presente despertava um erotismo depravado, devido àquele corpo despido, mártir, brilhantemente descomposto perante a dor. O pincel espetado no ventre foi interpretado por várias perspectivas: uns salientavam que era um símbolo fálico, outros defendiam que representava o que um artista era capaz de sofrer pela sua arte. Enfim, um vasto rol de interpretações, e há uma possibilidade de todas estarem certas.
Não sei se o artista foi julgado pelo homicídio, ou se o corpo foi sequer descoberto. O que permaneceu foi a inutilidade, a imagem tão forte que se tornou independente da mão criadora. Foi talvez quando o artista percebeu que a sua obra não precisava dele, que realmente viu a inutilidade de criar arte.
Por: Eva Duarte
Eva Duarte é uma jovem escritora portuguesa. Em 2010, publicou o romance infanto-juvenil «Angelyraa – Humanidade de Cristal» e o conto «A Lua Também Chora».
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Eva Duarte: O Limite da Expressão Reviewed by Revista 21 on 03:30 Rating:
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