Eva Duarte: A Transformação
Esta é a hora em que os sonhos se tornam homens. O chão está todo coberto de cinza, pronto para os receber. Eu própria estou coberta de cinza e de sangue que não é meu. É então que começa a parada dos homens desfeitos. Vêm talvez julgar o que foi feito por mim, ou sentiram-se apenas fascinados pela minha transformação. São chamados – quem sabe – pelo cheiro da carne que morre nas cinzas, a dois passos de mim.
Lá está ele, esse homem estendido com o rosto rasgado. Eu sei que o sangue que tenho no queixo e nos lábios é dele. Falta-lhe uma orelha e um bocado de carne na bochecha e ainda assim não estou satisfeita. Sinto em mim uma força estranha como aquela que os cães sentem quando provam sangue. Querem saber como o fiz, esses homens que vêm dos sonhos que formam homens. Bem, só me lembro de esticar os braços, agarrar-lhe a cara e cerrar os dentes. Com força. Como se estivesse a ser testada, como se tudo o que eu fosse estivesse resumido e condensado nos meus dentes. Quando o larguei e cuspi os bocados, ele deixou-se cair, provavelmente em dores – não o sei dizer, ele não gritou.
Os homens olhavam para mim, ensanguentada como uma loba, e para o homem desfigurado, parecendo impressionados. Eu estaria impressionada se fosse eles, portanto era isso que eu depreendia daquelas expressões inumanas.
Uma criança faz-se homem quando um homem mais velho morre. Mas o que aconteceria a este que nem criança nem morto era? Se eu neste momento não estivesse tão maravilhada com a minha própria transformação, estaria a admirar o seu sofrimento silencioso. A infelicidade realmente oferece uma beleza que não é possível ao sentimento oposto. A dor que ele estaria a sentir tem de ser grandiosa, algo tão magnificamente humano que eu jamais serei capaz de sentir agora que sou loba e provei sangue.
Já nada disto me diz respeito, sou o novo membro das bestas. Respiro o pó que se solta das peles daqueles homens, pois não são feitos de outra coisa, e ergo-me para evidenciar a diferença entre mim e aquele homem deitado e esburacado pela minha boca. Os homens rodearam-no e apertaram a roda em torno dele. Eventualmente, só o conseguia ver através dos outros, como que cercado por hienas translúcidas. Daqueles seus rostos estranhos surgiram dentições enormes e salivavam para cima dele. Devoraram-no e ele também nunca gritou.
Por debaixo das cinzas apanhei umas cordas que prendi em torno dos pescoços dos homens. Fi-lo quase enternecida, como se amasse estes homens desde a infância ou algo semelhantemente antigo. Saímos todos para a rua e estava de noite. Acentuava-se em cada contra-luz uma diferença palpável, como se alguém tivesse remodelado as ruas para que fossemos recebidos.
Contudo, isso não nos interessava. O sangue nas nossas bocas tinha secado. Tornámo-nos apenas numa imagem – eu opaca, eles completamente atravessados pela pouca luz que por ali havia. As ruas não nos atraíam, nem mesmo depois da mudança, portanto fomos até onde a terra se afoga. Tinha chegado a hora em que todos os homens voltam a ser sonhos e, partícula a partícula, o vento levou as nossas peles e a nossa carne.
Lá está ele, esse homem estendido com o rosto rasgado. Eu sei que o sangue que tenho no queixo e nos lábios é dele. Falta-lhe uma orelha e um bocado de carne na bochecha e ainda assim não estou satisfeita. Sinto em mim uma força estranha como aquela que os cães sentem quando provam sangue. Querem saber como o fiz, esses homens que vêm dos sonhos que formam homens. Bem, só me lembro de esticar os braços, agarrar-lhe a cara e cerrar os dentes. Com força. Como se estivesse a ser testada, como se tudo o que eu fosse estivesse resumido e condensado nos meus dentes. Quando o larguei e cuspi os bocados, ele deixou-se cair, provavelmente em dores – não o sei dizer, ele não gritou.
Os homens olhavam para mim, ensanguentada como uma loba, e para o homem desfigurado, parecendo impressionados. Eu estaria impressionada se fosse eles, portanto era isso que eu depreendia daquelas expressões inumanas.
Uma criança faz-se homem quando um homem mais velho morre. Mas o que aconteceria a este que nem criança nem morto era? Se eu neste momento não estivesse tão maravilhada com a minha própria transformação, estaria a admirar o seu sofrimento silencioso. A infelicidade realmente oferece uma beleza que não é possível ao sentimento oposto. A dor que ele estaria a sentir tem de ser grandiosa, algo tão magnificamente humano que eu jamais serei capaz de sentir agora que sou loba e provei sangue.
Já nada disto me diz respeito, sou o novo membro das bestas. Respiro o pó que se solta das peles daqueles homens, pois não são feitos de outra coisa, e ergo-me para evidenciar a diferença entre mim e aquele homem deitado e esburacado pela minha boca. Os homens rodearam-no e apertaram a roda em torno dele. Eventualmente, só o conseguia ver através dos outros, como que cercado por hienas translúcidas. Daqueles seus rostos estranhos surgiram dentições enormes e salivavam para cima dele. Devoraram-no e ele também nunca gritou.
Por debaixo das cinzas apanhei umas cordas que prendi em torno dos pescoços dos homens. Fi-lo quase enternecida, como se amasse estes homens desde a infância ou algo semelhantemente antigo. Saímos todos para a rua e estava de noite. Acentuava-se em cada contra-luz uma diferença palpável, como se alguém tivesse remodelado as ruas para que fossemos recebidos.
Contudo, isso não nos interessava. O sangue nas nossas bocas tinha secado. Tornámo-nos apenas numa imagem – eu opaca, eles completamente atravessados pela pouca luz que por ali havia. As ruas não nos atraíam, nem mesmo depois da mudança, portanto fomos até onde a terra se afoga. Tinha chegado a hora em que todos os homens voltam a ser sonhos e, partícula a partícula, o vento levou as nossas peles e a nossa carne.
Por: Eva Duarte
Eva Duarte é uma jovem escritora portuguesa. Em 2010, publicou o romance infanto-juvenil «Angelyraa – Humanidade de Cristal» e o conto «A Lua Também Chora».
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