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Eva Duarte: O Piar do Mocho


Estava sentado numa cadeira, com os cotovelos suportados pelos joelhos, observando o estranho pássaro no centro da sala vazia. Acreditava ser uma ave pelas penas e pelo bico, mas no todo não tinha aparência de ave ou de nada. Esfregou o rosto desalinhado, numa insónia que durava há dias, e tentou resgatar o seu controlo.

A perna esquerda tremia-lhe debaixo do cotovelo enquanto observava a criatura: o corpo era igual ao de um mocho, com terríveis candeias como olhos. Porém cresciam-lhe longas pernas de avestruz e uma cauda semelhante à de um pavão. O homem castigou as têmporas com os polegares – aquilo era uma aberração, uma criatura horrenda, um pensamento não esclarecido.

O homem levantou-se da cadeira e deambulou sobre o tormento de saber que a sua cabeça seria mais suportável vazia. O bicho seguia-o com um ar estúpido estampado nas córneas. O homem, tentando evitar a criatura, voltou-se para uma parede vazia. De repente nela surgiu uma projecção do seu passado. Enternecido, acarinhou a parede com os dedos doentes e amarelados. Olhou para si, não há muitos dias atrás, tão diferente; uma cara saudável e olhos longe de escorregarem das órbitas. E os ombros!, tão descontraídos e ingénuos.

Depois olhou as pessoas: flutuavam pelo passeio, sem qualquer conhecimento real e sem sentirem a falta de um. Viu-se por entre a multidão, a caminho de casa, onde a sua mulher o esperava. Tão elegante que ela era, com um brilho quase etéreo como se fosse eterna. Se ela não era bela, nenhuma outra o era.

O homem deslizou pela parede em agonia; queria tudo aquilo de volta. Olhou de novo o pássaro. Quanto mais o desespero preenchia o homem, mais a ave se distorcia. O seu corpo de mocho coloria-se com as penas de uma arara, berrantes e fortes, tornando o conjunto ainda mais bizarro. O homem gritou com a cabeça entre os ossos dos dedos e a criatura imitou-lhe o som – como uma arara faria. Ao virar costas à estranheza da criatura, encarou mais uma vez a projecção fantasma. Já se tinham passado umas horas e via-se torto sobre um livro pesado. O homem berrou, esperneou, esgravatou a parede como se pudesse arrancar o livro das mãos do seu passado.

Chamou-se idiota e as penas da ave eriçaram-se num espasmo. Começou a visualizar o início do seu pesadelo depois da leitura do livro. A sua esposa parecia-lhe agora macilenta, cheia de tiques e manias, como os de uma pessoa nervosa. Assustado, saiu para a rua. Mas lá as coisas também já não eram iguais. O chão era lamacento e as pessoas pareciam inacabadas. Havia barulho vindo de todo o lado. O homem coçava-se e sacudia-se; adquirira uma estranha sensibilidade às cores e aos sons; à beleza e à imperfeição. E ao movimento, principalmente ao movimento. Uma pergunta adoecia-lhe na mente: «Porquê?». Queria saber o que movia as pessoas, de que forma se questionavam elas, se se questionavam, o que lhes contraía as entranhas e como chegaram ali. O quê? Porquê? Como? Porquê?!

O homem chorava com a imagem atarantada de si mesmo. Queria esquecer como era pensar, mas nesse desejo algo lhe doeu. Deveria negar-se? Deveria procurar consolo na ignorância? Não sabia se conseguia voltar a ser um homem inacabado, sem interesse em terminar-se, apenas em troca de uma visão mais preciosa das coisas. Uma visão que não o corroesse e o deixasse dormir.

Quando olhou o pássaro, as cores tinham-se apagado e as pernas encurtado. O mocho piou e abriu em leque a sua cauda de pavão, num movimento vaidoso e teatral. O homem confrontou-o e estudou-o. O frenesi diluiu-se na sua mente. Como um velho, apacientou-se e sentou-se de novo na cadeira, analisando aquele pensamento já menos frenético.

«Também eu estou ainda inacabado», suspirou, «no fim do mundo encontra-se mais decepção do que alívio». O mocho sacudiu a cauda e mostrava-se por fim como um pássaro único, num comum mocho. O homem sorriu ao ver uma pena da cauda de pavão caída sobre o soalho. Guardou-a, aceitando os destroços de um mundo antigo e de si próprio. A projecção derreteu a parede e surgiu uma janela que dava para um mundo inexplorado. O homem transpôs a janela e respirou fundo. Olhou para o mocho coçando as penas e arrumou esse pensamento.

Por: Eva Duarte
Eva Duarte é uma jovem escritora portuguesa. Em 2010, publicou o romance infanto-juvenil «Angelyraa – Humanidade de Cristal» e o conto «A Lua Também Chora».

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