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Eva Duarte: A Rede de Syno


Observar uma cidade moderna pouco difere de observar o coração de uma máquina. O ar pesa nos pulmões como ferro e o barulho embrutece; e os chamados cidadãos? Mecânicos, todos eles. Necessários para o funcionamento da grande máquina.

Syno afastou-se da janela e da luz doente vinda de fora. Vestiu as meias de rede, arranjou-se em frente ao espelho e entregou-se à cidade. Andou por ruas cinzentas e passou por mecânicos sem cara. Graças à rede negra que usava em frente dos olhos, tudo se turvava, tornando muito mais fácil de ignorar. Syno ergueu o queixo. Estranhamente, sabia-se superior a todos os outros.

Entrou num antro escuro, comprimido por fumo e teclas de piano. Perscrutou todos os homens que lá estavam, examinando-os com uma objectividade predadora. Parecia tomar notas mentais, sem, no entanto, debater nenhuma delas. Pediu uma bebida forte e rodou pelo espaço. Já era a oitava noite consecutiva que se obrigava a ir ali e continuaria a voltar enquanto não encontrasse o que procurava.

Entornou a sua bebida no fato de um homem. Facilmente obteve perdão, sendo ela uma mulher belíssima. Um outro homem apressou-se a compensar a perda da bebida, oferecendo-lhe outra. Na língua dela já se formava uma recusa, até que o mediu com os seus olhos objectivos. Parecia-lhe ter uma largura de ombros perfeita e o suficiente de altura. Satisfeita com o acaso, sorriu pela primeira vez naquela semana e aceitou a bebida.

Nessa mesma noite partilhou a cama com ele. Ele era afável o suficiente e, sendo homem, não mostrou muita relutância. Para mais, confessou a Syno que a vira todas as noites e só tinha reunido coragem nessa mesma para lhe falar. Ela corou, como mulher treinada nas artes de sedução, lamentando em segredo que ele não a tivesse abordado mais cedo. Mas era um homem discreto apesar de tudo, e, graças a essa timidez rara, Syno perdeu oito noites preciosas.

Na manhã seguinte, ele ainda lá estava, adormecido com um sorriso a brotar-lhe dos lábios. As suas vidas não se separaram durante os dias seguintes, como se nunca tivessem conhecido rotinas separadas. Ao fim de praticamente uma semana, ela confessou-lhe que era casada há anos. O ciúme e a confusão desfiguraram a cara do homem por momentos, mas acabou por aceitar e encolher os ombros, num estoicismo admirável.

No fim da refeição que tomavam, ela pediu-lhe um favor precioso: precisava que ele assumisse o nome do marido. O pedido desagradou obviamente o homem corpulento, mas ela insistiu, explicando-lhe que temia que as pessoas falassem. Todos sabiam que ela era casada, ainda que nunca lhe tivessem conhecido o marido. Ela vinha de férias e ele não gostava daquela cidade, portanto recusava-se sempre a acompanhá-la.

Ele acabou por lhe ceder. Achou-a maravilhosa, uma verdadeira mulher, quando ela se mostrou tão apaixonada, sincera, desesperada! Uma mulher só o é quando se apresenta desesperada e todas as suas manias e caprichos são ternos, desde que a razão seja o amor. Era assim que ele pensava e foi assim que ele viu Syno, naquele momento. Ela ficou satisfeita e, como todas as mulheres cujos caprichos são cedidos, mostrou-lhe o quanto apreciava o favor.

Na tarde seguinte, Syno saiu para comprar alimentos. Já ela se ausentara há meia hora quando tocaram à campainha. O homem, sem qualquer hesitação, foi abrir a porta. Quem batia era um homem de estatura média, quase medíocre de tão banal, com uns óculos escuros a esconder-lhe os olhos. De repente, o homem dos óculos perguntou por um sujeito, mais em tom de confirmação do que interrogação. O amante secreto, tendo acedido ao favor da sua terna Syno, afirmou ser o próprio.

Um baque seco ecoou pelas paredes e o homem tombou, sangrando terrivelmente do abdómen. O homem dos óculos fechou a porta e fugiu, escondendo a pistola. Syno regressou a casa uma hora depois e viu o homem tombado. Ajoelhou-se ao seu lado e confirmou-lhe a pulsação com as mãos enluvadas. Levantou-se e correu para o telefone. Com uma rapidez fora do normal, surgiu um homem à porta. Syno concluiu que estava nas redondezas fazia dias; era o seu marido. Ela olhou-o, recuperando o olhar objectivo e crítico. Percebeu que ele puxava da arma e apressou-se a perguntar:

– Isso é mesmo necessário?

Ele respondeu-lhe que sim e disparou para a cara do homem morto. Syno voltou a cara, não ousando quebrar – não cobriria o rosto ou choraria. O marido explicou-lhe a necessidade de disfigurar o homem, elogiando Syno pela semelhança; tendo ele as suas roupas e tendo assumido a sua identidade, os homens que o perseguiam não teriam qualquer suspeita de que ele na verdade ainda vivia. Mandou-a apressar-se, pois tinham de ir apanhar o avião – mudariam de cidade e de nome. Arrumou a arma e voltou-lhe as costas. Syno tremeu e depositou toda a sua confiança na rede negra que lhe escondia a face e as verdadeiras emoções. Respirou fundo e foi fazer as malas.

Por: Eva Duarte
Eva Duarte é uma jovem escritora portuguesa. Em 2010, publicou o romance infanto-juvenil «Angelyraa – Humanidade de Cristal» e o conto «A Lua Também Chora».

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