Eva Duarte: A Razão de um Delírio
Encontrei-me com ela por acaso, enquanto me ponderava resgatar dos vivos. Estava quieta e, embora eu não a conhecesse, olhava-me como se esperasse por mim. A atitude daquela rapariga imóvel, com um casaco demasiado grande para ser seu, perturbou-me e obrigou-me a parar. Ficámos diante um do outro, empenhados no silêncio. Automaticamente perguntei-lhe o nome; pareceu-me ser a única coisa que tinha de seu. Respondeu-me e soou-me descabido, como se fosse inventado por uma criança. Ainda assim, era tão bom como outro qualquer.
Não me consigo lembrar se a trouxe até minha casa, se foi ela que me seguiu. Mas deixei-a entrar e não demorou muito até a encontrar adormecida no sofá. Peguei-a ao colo e deitei-a na cama. Recuei e sentei-me na poltrona, a cinco passos de distância. Dediquei-me a observá-la; tinha o sol entornado na pele e enrolava-se nas suas formas de mulher, alheada de tudo. Os movimentos que o acto de respirar provocava no seu corpo hipnotizavam-me. Ela emanava uma serenidade espessa. Reduzi a minha respiração até encontrar a dela; os músculos relaxaram... a cabeça ficou vazia... só na manhã seguinte me dei conta que tinha adormecido ali.
Passei o dia com ela, pondo a minha vida em espera. Desta vez, ela falou bastante. Intrigou-me a forma como o fazia, pois falava como se pisasse fogo; possuía uns gestos muito exagerados. Enquanto ela discursava sobre os loucos, fui controlado por um impulso quente que me deixava os dedos dormentes e a testa suada. Peguei em papel e carvão e desenhei-lhe a voz. A sua identificação, para mim, era aquele seu nome desajeitado e a voz.
Quando terminei o desenho, senti instantaneamente a ressaca do êxtase. Com uma sensação de leveza nova para mim, dediquei toda a minha atenção à rapariga dos olhos líquidos. Tinha-se calado, por fim, regressando ao mesmo silêncio de quando nos vimos pela primeira vez. Algo dentro de mim, talvez a voz da sociedade de que padecemos todos, dizia-me que devia achar toda aquela intimidade uma coisa estranha. Mas, em boa verdade, era a primeira vez em muito tempo que me sentia tão tranquilo.
Emprestei-lhe roupas minhas para podermos sair de casa. Lamentei que lhe escondessem as formas que me tinham comovido na noite anterior. Eu seguia atrás dela, com as mãos enterradas nos bolsos, abandonando-me à aparência dos meus pensamentos.
Quando levantei os olhos, percebi que estávamos no cemitério. Os portões de ferro e o muro de pedra que resguardavam as cruzes e as campas deram-me um calafrio. Não por aquele ser o território dos mortos e das suas memórias, mas porque me envergonhei por ter descurado a sepultura do meu pai. O segundo arrepio veio quando me lembrei que, se esta rapariga não tivesse aparecido, esta poderia ser a minha morada. Por outro lado, se não a tivesse seguido tão enublado, nunca teria vindo aqui. Ter-se-ia ela perdido ou sabia para onde se dirigia?
Decidiu entrar. Vê-la passear-se por entre aquela arquitectura era desconcertante. O chão não estava tratado e as ervas davam-lhe um ar doente. Algumas das campas estavam partidas e cobertas de musgo. Ainda fora do portão, achei o que via absurdo. A beleza devia ser um resultado de harmonia e, embora a estética desta rapariga jamais fosse coerente com o gótico, senti a mesma admiração que se tem pelas coisas belas.
Ali estava ela e, segundo me pareceu, a convidar-me a entrar. Apesar da tensão, entrei. Encontrei-a sentada numa campa, que reconheci como sendo a do meu pai. Olhei para a rapariga, que me deu um beijo na face e deixou-me sozinho, no meio das pedras. Quem terá começado a pôr pedras sobre cadáveres? Enterrar os mortos é o que sustém a ilusão de presença – precisamos de um corpo para que faça eco de uma existência. Lembrei-me, então, porque razão deixara de vir; saber que carne da minha carne estava enterrada, fecha-da, condenada a desfazer-se até ser pó constrangia-me. Sempre que vinha, via um monte de ossos envoltos nas roupas que foram do meu pai.
Sentei-me na campa, para não ter de encarar o nome escrito na cruz. Senti alguém tomando o lugar ao meu lado. Olhei e vi o meu pai, tal e qual como me lembrava dele. O coração apertou-se debaixo do esterno até atingir o tamanho de uma uva. O homem ao meu lado, de braços nos joelhos e olhos postos nos nós dos dedos, parecia apenas incomodado com as suas reflexões. A imagem parecia-me opaca o suficiente para ser real. A minha razão estava a debater-se com barreiras e não ajudou ver que a imagem da rapariga desvanecia, à medida que a do meu pai se materializava.
Enterrei a cabeça nas mãos e as vertigens da irrealidade atacaram-me o estômago. O que me incomodava neste absurdo era entendê-lo e sabia que precisava de decidir de que lado é que estava. Eles iam desvanecendo e materializando-se à vez, roubando força um ao outro. Gritei para me libertar da indecisão e abri os olhos para encarar uma luz fraca. Estava em cima de um banco com uma corda nas mãos. Assustei-me e atirei-me do banco, puxei a corda e atirei-a pela janela. Percebi que ao fazê-lo tinha chegado a uma decisão.
Por: Eva Duarte
Eva Duarte é uma jovem escritora portuguesa. Em 2010, publicou o romance infanto-juvenil «Angelyraa – Humanidade de Cristal» e o conto «A Lua Também Chora».
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