Eva Duarte: O Presságio
Ofélia é uma mulher de difícil descrição, possuindo apenas duas coisas que são talvez o que melhor a descrevem. São elas: um bebé imaginário que carrega no ventre e um corvo real que guarda numa gaiola de ferro. Eram ambos rastos do jovem marido que partira há uns meses atrás. A letargia diária tornara Ofélia numa figura quase estóica. O seu porte reforçara-se e o seu coração obrigou-se a um aumento, para conseguir abarcar a quantidade de esperança necessária para a espera.
Os serões da tarde eram passados de forma que a muitos pode parecer bizarra; Ofélia passeava pelos corredores um carrinho de bebé vazio. Não me atrevo a tentar justificar este ritual. O amor que a jovem depositava naquele bebé, que julgava carregar no ventre, era comovente e triste. Falava-lhe muitas vezes, que valia o mesmo que falar sozinha. Este filho é um fruto sem semente. Ofélia concebeu-o sozinha com tamanha imaginação; empenhava- se agora a carregá-lo até ao momento em que conseguisse impô-lo à realidade. O segredo da sua gestação? Ela acreditava que, de facto, o que levava no ventre era um bebé real.
Agora que já foram revelados os incomuns, embora simples dias de Ofélia, serão reveladas as noites. Devo acrescentar que as noites eram tão verdadeiras quanto o bebé e partilhavam ambos da mesma origem, logo da mesma força. Porém, as noites assustavam-na terrivelmente. Ofélia temia a noite e nem as insónias a livravam dos pesadelos que a atormentavam.
Ofélia deitou-se com os lençóis sobre a cabeça e fez por dormir. A meio da noite, despertou do seu sono leve em sobressalto. Do berço que mantinha junto à parede vinha o choro de um bebé. A jovem respirou fundo e tentou levantar-se para acudir o bebé. Mas parecia estar presa à cama, não conseguia levantar os ombros do colchão para além de quinze centímetros. Ofélia fez por se levantar, lutou por isso até o corpo latejar de esforço. Sentiu a cara quente das lágrimas, enquanto o choro do bebé aumentava.
Naquele quarto, durante a noite, Ofélia já não era a rapariga estóica – era uma criança assustadiça. O choro que ouvia podia ser o dela, no seu pranto infantil. E quanto mais se deixava devorar pelo pânico, mais alto soava aquele choro. Estagnou comprimida contra a cama. Por entre a escuridão viu um brilho metálico. Assim que os olhos se habituaram à escassa luminosidade reconheceu uma lâmina: uma espada suspensa no tecto.
O fôlego da pequena Ofélia ficou encurralado nos pulmões. Os olhos iam rebentando dentro das pálpebras enquanto se esforçava por gritar. Estava perto de sufocar no grito, quando um espasmo fez com que reagisse. Tentou de novo erguer-se, mas continuava presa à cama. Os seus gritos concorriam agora com o choro do bebé e o esvoaçar nervoso do corvo, que grasnava preso nas barras. Um ruído seco despertou-lhe os sentidos e calou-se, embora os outros sons se mantivessem ensurdecedores. Os seus olhos giravam pelos cantos obscuros do quarto, tentando adivinhar a origem do ruído.
O seu receio concretizou-se: a espada desprendeu-se do tecto e caiu-lhe directa no ventre. Segundos depois, com as mãos a encaixarem o ventre, Ofélia inspirou para confirmar se ainda estava viva. Sentia que a espada estava cravada no colchão, atravessando-lhe o útero. O choro que até ali a tinha enervado cessara no momento em que a espada caíra, como se tivesse realmente morto o bebé. A rapariga deixou-se adormecer, em suor e lágrimas, como se acreditasse ter morrido com ele.
Na madrugada seguinte acordou com pontadas agudas no ventre. Já não existia, obviamente, a espada, mas as dores cegavam-na. Contracções, deduziu Ofélia. Guiou-se sozinha, amargamente feliz, no seu trabalho de parto. Gritou, respirou, apertou e mordeu lençóis; o seu corpo lutava por expulsar um bebé que não existia. Mas as contracções e tudo a elas inerente estavam presentes. Tudo parecia funcionar naturalmente, tudo estava lá, tudo à excepção de uma criança. Porém, o sangue era real – era a necessidade de expulsar algo.
À medida que o sol ia nascendo, ia realçando a palidez de Ofélia. Esvaziava-se em sangue. Atordoada, tentava sentir com os pés um bebé caído aos pés da cama. Que foi feito do seu fruto? Tinham-lho roubado. Mas como? Estava sozinha naquela casa há meses. Outra coisa estranha; não soube com que meios, mas o corvo saíra da gaiola e estava pousado junto à sua cabeceira. O pássaro ébano foi a última coisa que Ofélia viu antes de adormecer, profundamente.
Tempo depois, tempo incerto, acordou com uma mão fria na face. Abriu os olhos, muito dengosa e lesta. Reconheceu o marido desaparecido, com um bebé recém-nascido nos braços. Ofélia sorriu. Toda a espera, todo o sofrimento pareciam recompensados. Já não era necessário viver dependente da imaginação, havia um outro mundo intocável, agora. A morte. E Ofélia nunca fora tão dourada.
Por: Eva Duarte
Eva Duarte é uma jovem escritora portuguesa. Em 2010, publicou o romance infanto-juvenil «Angelyraa – Humanidade de Cristal» e o conto «A Lua Também Chora».
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